Naquela manhã havia uma indistinção no ar. Gotículas mínimas de inquietude numa bruma seca, porque o dia estava radioso de sol e céu limpo. Não se via um palmo à frente do nariz. Não se via.
Percorreu o corredor em poucos passos, porque já não tinha muitos para gastar, independentemente do comprimento do espaço. Seis portas prometiam, cerradas. Uma fechada há momentos, guardava ainda memória do que era e deixava-se tranquila apoiada na ombreira.
Cinco mistérios, que a mão quis alcançar. Cinco. Obrigam a escolher e dada a economia de passos foi a mais próxima que se apercebeu de que a maçaneta girava. Num gesto de simpatia, abriu-se. Pó. O cheiro a pó chegou antes da obscuridade e da eficiência das lâmpadas incandescentes do lustre imponente. Depois, o clarão e a solidão sentada em cada uma das cadeiras, repartida pelas doze – uma dúzia – num conforto resignado. Quem diria?... A sala de jantar. Esqueceu a luz acesa, móveis e memória iluminados, com destaque para as flores secas do centro de mesa, também elas já tão antigas que mais não eram do que pó não agitado.
De novo a linha longa do espaço de ninguém. E o desafio fechado atrás de outra porta, ávida de exercício, apenas encostada. Quase se abriu antes do toque da sua mão. Quase se recordou do que lá encontraria, talvez pelo odor a restos de lume crepitante, antes das televisões e das parafernálias eléctricas. O aspecto altivo da lareira substituiu-lhe a lembrança da sala anterior e o quadro que a enfeitava devolveu-lhe a mocidade. Faltavam as cartas com as pontas gastas na mesinha de jogo e na poltrona podia repousar ainda um dos seus livros preferidos. Mas não havia livro nenhum fora das estantes. Nem alegria. Nem vida.
Havia dormido no seu quarto nessa noite, sentindo uma falta, sentindo-se em falta. Talvez por isso as três portas que restavam lhe gritassem à curiosidade. Talvez por isso tenha feito um real esforço para empurrar a porta do meio do lado esquerdo, teimosa e empanada, desafiando-o. Os hóspedes hão-de a ter tratado mal. Era um quarto. Encardido de gente, de amigos e conhecidos, de algum necessitado em noite de invernia, que a sorte tivesse guiado até à coberta da generosidade daquela casa. Pó de pele, de cabelo, do respirar alheio. É preciso arranjar a porta. Ou deixá-la sempre aberta, não lhe apeteça regressar.
A falta falava-lhe: «Procura-me, encontra-me, encontra-te! Anda!». E os passos contados regressaram ao intimidante corredor percorrendo-o até às duas portas das pontas. Lá no fundo do escuro que a miopia desfoca ainda mais. Fundo, respirou fundo. Mais fundo, como se adivinhasse a coragem, como se a exortasse. Rangeu - artrítica - nos gonzos a porta do fundo à direita. E cheirou-lhe a cor-de-rosa quando entrou com os olhos fechados e chegou facilmente à janela e a abriu de par em par. Rosa de cor, «Rosa – ai, minha, Rosa! – que aqui te perdi, filha minha, filha da saudade…». E tombou, sucumbindo à memória, encostado à cama demasiado pequena para ter ficado vazia tão cedo, agarrado às bonecas sorridentes com que Rosa quase não brincou.
Não sabe como, mas acordou de novo no seu quarto, que a inquietação enche daquele nevoeiro seco, gasto, que lhe tolda a lucidez e a clarividência. Não foram elas que lhe disseram que faltava uma porta. Foi algo mais inexplicável – talvez o grito constante reverberando no seu íntimo: faltas-te! Busca-te! – mais primitivo. Teve que se apoiar na parede. Agora é assim. De um dia para o outro perde-se. Perde forças, perde memórias, vai-se largando aos poucos porque não se consegue segurar inteiro pelo caminho. Solidária e alva, pontilhada de quadros que não lhe dizem nada, porque não falam, a parede acolhe-lhe a mão e ei-lo diante daquela última porta. À esquerda. Oferecendo-se-lhe. Entrou.
A janela estava aberta, o que não deixava de ser estranho, numa casa completamente às escuras. Sentiu vida, apesar dos livros amarelados, dos brinquedos antigos, de lata. Sentiu ar respirado. Como se ali não faltasse nada. Sentou-se na cama de solteiro, sob a colcha antiga mas lavada e da memória saltou um cheiro fresco a sabão azul-e-branco. E umas mãos molhadas, num corpo jovem, tonificado, debruçado sobre o tanque, esfregando e estendendo a brancura dos lençóis de linho. No fim da memória, um sorriso. Aquele sorriso radioso que nascia sempre que o via, sempre que o pressentia. Aquele sorriso que lhe falta na enorme cama de casal e lhe grita incessantemente na bruma de quem perdeu e se perde todos os dias.
-Pai! O que fazes aqui sozinho? Perdeste-te?
A claridade do quarto. A vida do quarto. A respiração. Num relance, encontrou-se. Na voz do filho, na tristeza das perdas que lhe reconheceu desenhadas nas rugas e nos cabelos brancos precoces. Naquele momento breve de lucidez recordou o acidente que lhe matou mulher e filho, pouco antes do dia em que apareceu no Lar e lhe disse que iam regressar os dois à aldeia, recuperar a velha casa e as vinhas e esquecer o medo e a solidão.
-Anda, Pai. Vamos até à cozinha, que está quente e limpa. A D. Hortense vem hoje fazer o resto da limpeza. E à tarde vamos espreitar as vinhas. Ainda há pouco te deitei para a sesta.Vá! Tens que descansar um pouco agora.
Os passos foram-se perdendo à medida que percorria o corredor de portas descobertas, enrolado no abraço cúmplice do filho. A bruma escapou-se do quarto e – indistinta – adianta-se-lhe inexoravelmente onde quer que seja, até em pensamento.
Só a falta perdeu a força. De grito que era deixou-se ficar sussurro suave, quase doce melodia, soando por entre as vinhas que as suas mãos antigas tão bem conheciam.
Ainda que à revelia da memória.