31 janeiro 2011

ALÉM TEJO


Ardes no vento que passa

Pedes água a cada nuvem

Sob o Sol que te trespassa

Não se vislumbra ninguém…

Nem coberto pelo ouro

Da riqueza que faz pão

Te adivinham tesouro

Ao alcance de cada mão.

Respiro a generosidade

Por entre passos sem eco

Da sombra e da verdade

De um sobreiro quase seco.

E oiço sob as oliveiras

Onde se sentava o pastor

As cantigas das ceifeiras

Derretendo sob o calor.

Ardes de febre e de vida

Abraças a noite num beijo

Feito de terra esquecida

Deixaram-te ficar Além Tejo.

29 janeiro 2011

SILÊNCIO

Meti a mão nas entranhas do silêncio
Esmurrei-o
Senti-lhe o sangue abrasador nos dedos
Rasguei-o
Soltou-se, irrompeu brutal em desvario
Persegui-o
Pelas vielas escuras da rua dos medos
Encontrei-o
Sentado ofegante num beco sem saída
Abracei-o
No abraço que se oferece à vida perdida
Amei-o
Menino perdido no meio de brinquedos
Guardei-o
Para sempre fechado na caixa dos segredos

25 janeiro 2011

UMA HORA


Ia a passar na rua, distraída, quando encontrei uma hora.


Uma hora perdida.


Já tinha ouvido falar delas, mas nunca tinha encontrado nenhuma.


Fiquei a observá-la.


Parecia tão hora como as demais, embora não parecesse tempo demais.


Aproximei-me devagar.


Perguntei-lhe se por acaso não queria uma ocupação, um destino.


Que não – senão gastava-se.


Em redor todas as horas estavam agrilhoadas ao estereótipo da felicidade.


Com lágrimas nos ponteiros.


Deixei-a.


Intacta.


E só.





22 janeiro 2011

E PORQUE NÃO?



Enrolei-me numa cortina, porque não podia ficar nua. Há momentos em que a nudez nem sequer existe, porque se está vestido só de alma. Mas não podia ficar nua enquanto a alma vagava sem destino. Era translúcida e acetinada, suave. Cobri os ombros, enrolei-a ao corpo, segurei-a com uma mão. Deixei a outra no calor macio, escondida. ´


Tolhia-me os movimentos, por isso andava devagar. Mas sempre e em frente. Olhos postos numa espécie de horizonte que não acompanhava a curvatura da terra. Numa linha que se deslocava tanto quanto eu – exactamente à mesma velocidade que os meus passos enrolados e que se perfilava ondulada à distância.


Apercebi-me que o chão era absolutamente normal, por isso o calor abrasador nos tornozelos tinha que ter outra origem. Ardia. A minha parca vestimenta estava em chamas – num fogo quieto, manso, sem labareda à vista. Consumia-me o abrigo lentamente, testando-me o limite.


Avistei um lago ao fundo. O desconforto alastrando à barriga das pernas, a brisa inflamando a labareda, impaciente. Ficava no caminho. Fui.


A água ardia nos tornozelos queimados. Não refrescava, não aliviava. Latejava como se os aspergisse com álcool ou com sal. Sal… Banhava-me nas tuas lágrimas enquanto o teu fogo me consumia. E o horizonte ondulado se agitava, num adeus atabalhoado.


Adeus. E porque não?

18 janeiro 2011

PREGUIÇA



esta preguiça indizível deitada em cima de mim

segura-me com a ponta do dedo

de cada vez se ausenta brevemente

e regressa no momento em que me tento levantar

esta lassidão colada à força na vontade

deixa marcas de cola nos sentidos

arrasta pele quando a tento arrancar

faz-me refém dos dias que só querem passar

invisíveis

perdidos

preguiçosos













08 janeiro 2011

RELEVO

Foto: Goreti Ferreira
E ao contrário? Haveria relevo?
Pega na tua vida com ambas as mãos. Como se fosse uma folha de cartolina. Inspira. Expira. Inspira de novo com mais força e enquanto expirares vira a folha de cabeça para baixo. Isso! Agora sobe-lhe para cima e percorre-te do avesso.
Será que as montanhas que se te ergueram são côncavas ao contrário? Cuidado então! Não caias nas profundezas do abismo nos seus inversos. A não ser que as tenhas transposto. E então podes usar uma corda e – como um espeleólogo – descê-las até lhes encontrares o fim que sabes que têm. O fundo à distância milimétrica do que foi um cume. Que o mais ínfimo dos milímetros nos define aí: onde poderíamos ser o que afinal não fomos.
E os abismos que te fizeram sentar à sua beira até saberes o mapa da coragem para os ultrapassar? Os tantos que atravessaste a nado depois de teres chorado um rio que os enchesse? Serão montanhas de cabeça para baixo? Senta-te, de pernas cruzadas. E descobre se te apetece ignorá-las ou enfrentá-las. Inventa um sucedâneo de lágrimas que te permita trepar e escalar.
Sobra a planura. Um deserto liso que aceita passos mas recusa marcas de pegadas. Que acolhe horizontes, desde que os possa colocar todos no mesmo lugar, sobrepostos, como se fossem só um, embora sejam infinitos colados uns aos outros. Um mar calmo sem ondulação, em que a água é agitada, arrefecida, aquecida, chapinhada, mas sempre tão inteira, tão inabalável e tão perfeita que nem as marcas que lhe queremos deixar consente. A planura, o horizonte, a água recompõem-se sempre. Ou será que nunca as conseguiste realmente tocar a ponto de lhes alterar o inverso?
Pega numa esponja, num alfinete e fura-te! Sim! Escolhe uma forma, a forma do que queres ser, usa a imaginação ou o sonho como esboço sobre ti próprio e picota-te. Como na escola primária. Furo atrás de furo, sempre próximos e regulares. Não desistas, não te canses, não penses no que estás a fazer. Faz!
Inspira de novo. Expira. E na próxima inspiração desfaz o teu avesso. Vira-te. Pouco mudou, não te parece? As montanhas e os abismos do passado sempre no mesmo sítio e a planura alvitante do quotidiano esperando-te com o sorriso malicioso de quem sabia que havias de regressar.
Nada o teu último abismo alagado – às vezes consegues enchê-los de suor – e sobe a montanha mais próxima que conseguires avistar no teu horizonte imediato. Sorri à planura. Eu sei que não lhe queres sorrir, que a detestas, mas sorri em desafio!
Lembras-te do picotado? Não me digas como te sonhaste. Não preciso saber a tua forma, desde que faças o que te digo: salta agora do topo dessa montanha para a folha plana, árida e previsível da rotina! Salta! Já!
Na escola primária, depois de picotar pacientemente, obtinhas a forma desejada e o seu vazio no resto da cartolina. Por isso deves sorrir: virada ao contrário, a cartolina tem agora exactamente a mesma coisa de um lado e do outro. Vazio. Resto de ti. Sonho concretizado. Planura maculada.
Mesmo no contrário, relevas tu.

06 janeiro 2011

EU SEI…


Foto: Goreti Ferreira
Eu sei que não foi hoje.
Será amanhã ou depois.
Mas continuo a querer que tivesse sido já ontem.

- Então e.. vais?


O cabelo revolto, o olhar lançado em desafio, a voz sumida. O cheiro dos beijos ainda se sentiria se outro beijo viesse. O suor entretanto seco ainda lhe repousava na pele pronto a misturar-se com gotas novas, esmagadas contra os lençóis desalinhados. Os olhos fechados ainda lhe devolviam realidade, desde que não respirasse.


- Então e… ficas?


A camisa era menos macia do que a pele dela, principalmente quando acordava desejo logo pela manhã. A noite e o sono percorriam-na como as mãos de uma massagista e a pela ficava adocicada e suave. Um beijo no pescoço para a acordar e tinha mel na boca e nas mãos, antes de os corpos se desfazerem em paixão. Vestido dela voltava tantas vezes a adormecer, no seu abraço flexível e frágil.

- Sim.
- Sim…

E o oceano passou a chamar-se saudade, rasgada pelo avião que o galgou. E todas as portas e janelas de cada casa passaram a ter exactamente a mesma vista daquele quarto de hotel em que as manhãs nunca terminaram nem mesmo depois de o Sol se pôr.
Será a ausência de um adeus um tácito «até breve»?


Será amanhã ou depois.
Hoje sei que não foi..
Mas continuo a querer que volte a ser ontem.

02 janeiro 2011

MEMÓRIA

Naquela manhã havia uma indistinção no ar. Gotículas mínimas de inquietude numa bruma seca, porque o dia estava radioso de sol e céu limpo. Não se via um palmo à frente do nariz. Não se via.

Percorreu o corredor em poucos passos, porque já não tinha muitos para gastar, independentemente do comprimento do espaço. Seis portas prometiam, cerradas. Uma fechada há momentos, guardava ainda memória do que era e deixava-se tranquila apoiada na ombreira.

Cinco mistérios, que a mão quis alcançar. Cinco. Obrigam a escolher e dada a economia de passos foi a mais próxima que se apercebeu de que a maçaneta girava. Num gesto de simpatia, abriu-se. Pó. O cheiro a pó chegou antes da obscuridade e da eficiência das lâmpadas incandescentes do lustre imponente. Depois, o clarão e a solidão sentada em cada uma das cadeiras, repartida pelas doze – uma dúzia – num conforto resignado. Quem diria?... A sala de jantar. Esqueceu a luz acesa, móveis e memória iluminados, com destaque para as flores secas do centro de mesa, também elas já tão antigas que mais não eram do que pó não agitado.

De novo a linha longa do espaço de ninguém. E o desafio fechado atrás de outra porta, ávida de exercício, apenas encostada. Quase se abriu antes do toque da sua mão. Quase se recordou do que lá encontraria, talvez pelo odor a restos de lume crepitante, antes das televisões e das parafernálias eléctricas. O aspecto altivo da lareira substituiu-lhe a lembrança da sala anterior e o quadro que a enfeitava devolveu-lhe a mocidade. Faltavam as cartas com as pontas gastas na mesinha de jogo e na poltrona podia repousar ainda um dos seus livros preferidos. Mas não havia livro nenhum fora das estantes. Nem alegria. Nem vida.

Havia dormido no seu quarto nessa noite, sentindo uma falta, sentindo-se em falta. Talvez por isso as três portas que restavam lhe gritassem à curiosidade. Talvez por isso tenha feito um real esforço para empurrar a porta do meio do lado esquerdo, teimosa e empanada, desafiando-o. Os hóspedes hão-de a ter tratado mal. Era um quarto. Encardido de gente, de amigos e conhecidos, de algum necessitado em noite de invernia, que a sorte tivesse guiado até à coberta da generosidade daquela casa. Pó de pele, de cabelo, do respirar alheio. É preciso arranjar a porta. Ou deixá-la sempre aberta, não lhe apeteça regressar.

A falta falava-lhe: «Procura-me, encontra-me, encontra-te! Anda!». E os passos contados regressaram ao intimidante corredor percorrendo-o até às duas portas das pontas. Lá no fundo do escuro que a miopia desfoca ainda mais. Fundo, respirou fundo. Mais fundo, como se adivinhasse a coragem, como se a exortasse. Rangeu - artrítica - nos gonzos a porta do fundo à direita. E cheirou-lhe a cor-de-rosa quando entrou com os olhos fechados e chegou facilmente à janela e a abriu de par em par. Rosa de cor, «Rosa – ai, minha, Rosa! – que aqui te perdi, filha minha, filha da saudade…». E tombou, sucumbindo à memória, encostado à cama demasiado pequena para ter ficado vazia tão cedo, agarrado às bonecas sorridentes com que Rosa quase não brincou.

Não sabe como, mas acordou de novo no seu quarto, que a inquietação enche daquele nevoeiro seco, gasto, que lhe tolda a lucidez e a clarividência. Não foram elas que lhe disseram que faltava uma porta. Foi algo mais inexplicável – talvez o grito constante reverberando no seu íntimo: faltas-te! Busca-te! – mais primitivo. Teve que se apoiar na parede. Agora é assim. De um dia para o outro perde-se. Perde forças, perde memórias, vai-se largando aos poucos porque não se consegue segurar inteiro pelo caminho. Solidária e alva, pontilhada de quadros que não lhe dizem nada, porque não falam, a parede acolhe-lhe a mão e ei-lo diante daquela última porta. À esquerda. Oferecendo-se-lhe. Entrou.

A janela estava aberta, o que não deixava de ser estranho, numa casa completamente às escuras. Sentiu vida, apesar dos livros amarelados, dos brinquedos antigos, de lata. Sentiu ar respirado. Como se ali não faltasse nada. Sentou-se na cama de solteiro, sob a colcha antiga mas lavada e da memória saltou um cheiro fresco a sabão azul-e-branco. E umas mãos molhadas, num corpo jovem, tonificado, debruçado sobre o tanque, esfregando e estendendo a brancura dos lençóis de linho. No fim da memória, um sorriso. Aquele sorriso radioso que nascia sempre que o via, sempre que o pressentia. Aquele sorriso que lhe falta na enorme cama de casal e lhe grita incessantemente na bruma de quem perdeu e se perde todos os dias.

-Pai! O que fazes aqui sozinho? Perdeste-te?

A claridade do quarto. A vida do quarto. A respiração. Num relance, encontrou-se. Na voz do filho, na tristeza das perdas que lhe reconheceu desenhadas nas rugas e nos cabelos brancos precoces. Naquele momento breve de lucidez recordou o acidente que lhe matou mulher e filho, pouco antes do dia em que apareceu no Lar e lhe disse que iam regressar os dois à aldeia, recuperar a velha casa e as vinhas e esquecer o medo e a solidão.

-Anda, Pai. Vamos até à cozinha, que está quente e limpa. A D. Hortense vem hoje fazer o resto da limpeza. E à tarde vamos espreitar as vinhas. Ainda há pouco te deitei para a sesta.Vá! Tens que descansar um pouco agora.

Os passos foram-se perdendo à medida que percorria o corredor de portas descobertas, enrolado no abraço cúmplice do filho. A bruma escapou-se do quarto e – indistinta – adianta-se-lhe inexoravelmente onde quer que seja, até em pensamento.

Só a falta perdeu a força. De grito que era deixou-se ficar sussurro suave, quase doce melodia, soando por entre as vinhas que as suas mãos antigas tão bem conheciam.

Ainda que à revelia da memória.