Por entre as rugas da face adivinham-se histórias, ou História... O andar trémulo, apoiado na fiel bengala denuncia os anos que se ocultam na memória. A voz que desafina no esforço tenta reproduzir melodias antigas, cantadas outrora com vigor e afinação. À desgarrada, ninguém o batia e era ele o cantador da aldeia. Nos dias de festa, pegava no harmónio e recheava a música de versos que Deus lhe enviava sem aviso. Jamais fixava uma quadra, jamais a preparava de antemão: as palavras nasciam-lhe na inspiração e morriam com o fim dos sons da concertina.
Por entre as pedras escuras do balcão da casa, contempla com os olhos apagados o dia aceso: brilha o Sol num céu feito de fiapos brancos muito ténues. Venera aquela luz indistinta, a única que ainda repassa a parede de cataratas construída. O tempo não perdoa...
O cabelo de fios de prata abundantes e rebeldes surge desalinhado sob o chapéu negro surrado, maltratado do lume e dos anos. Foi barbeiro. E lavrador. E mineiro. E pedreiro. Sim, pedreiro, quando foi para a França!
Homem de mil ofícios, em menino foi pastor. Conheceu as invernias na serra, dormindo sob cabanas improvisadas. Conheceu a linguagem dos elementos, dos animais. Tornou-se caçador afamado: não havia coelho que lhe escapasse. Era o tempo da liberdade: pés descalços no verão, tamancos de madeira no inverno, que ele próprio fazia.
Depois das cabras e das ovelhas, o arado. Pai e mãe, irmãos e irmãs, juntos pela lida na terra que garante o mitigar da fome. De Sol a Sol, com chuva e neve, a terra não tem horários nem feriados...
O corpo franzino de sempre é agora quase esquelético: músculos firmes desabaram em pregas de pele e com eles, desvaneceu-se a força que, em jovem, lhe permitia fazer longas caminhadas e jornadas de trabalho de sol a sol.
A memória não se esquivou com as forças. Está lá, plena de vigor, exercitada compulsivamente pela necessidade de fuga à escuridão do dia-a-dia, como se fosse sempre noite.
Por companhia, um rádio. Ouve o relato, as notícias e o terço. Também é o amigo sem rosto que lhe diz as horas e o dia da semana.
Nos dias frios, aconchega-se nas recordações dos pés quentes da mulher que lhe morreu no parto, e lhe deixou como herança dois moços e uma menina – só os rapazes, que teve saudades da menina e chamou-a a si mal volvida uma semana.
É feliz com muito pouco, o tanto que por vezes lhe falta: companhia e carinho. Conta anedotas malandras fazendo de conta não saber que há mulheres por perto. Cai-lhe uma lágrima no meio dos silêncios, porque são de gente, não são os do campo, cujos segredos conhece e guarda.
P’ra lá do século – com que já conta – é tudo lucro.
Um beijo meu – é um tesouro!
Ao meu Avô, que com 105 anos coleccionou o último silêncio, meses depois do último beijo que lhe dei – um tesouro que sei que guardou. Como lhe guardei a saudade.
3 comentários:
Ser avô, avó...é uma compensação de Deus por chegarmos à idade mais avançada...e haver muitas histórias por contar...
Esta é muito bonita.
Um beijo da avó Mena
G...
O teu avô fez-me recordar o meu avô materno...e as saudades enormes que dele sinto ainda hoje!
Foi a pessoa mais corajosa que conheci...e com uma capacidade de amar imensa!
Obrigada por este doce momento de regresso ao passado!
Beijinho grande p'ra ti
Obrigada,queridas princesas desse reino onde tudo é doce.
O meu avô... que punha açúcar no vinho e trazia um coelho na mala quando nos vinha visitar a Lisboa. Doce também,o meu avô!...
Obrigada!
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