Pedalava velozmente, vigorosamente. Meta! Vitória! Era só no que pensava. E olhava para trás, ansioso: não, não vinha ninguém, deixara-os para trás.
A sua vida resumia-se à bicicleta. Mais que um prazer, um hobby, era uma profissão abraçada com paixão. Um escape, quase uma amiga. Desde pequeno, desde a velha ''33'', tinha o hábito de pedalar para longe, sózinho. Era uma sensação incrível de liberdade.
A ''33'' era uma pequena bicicleta amarela. O nome devia-se ao facto de ter uma pequena chapa, imitando uma chapa de matrícula, com o número 33. Foi a avó que lha deu num Natal longínquo. Depressa se desenvencilhou das rodinhas e cada vez se afastava mais da pequena casa isolada.
Viveu com a avó, feliz, até aos 7 anos. A felicidade acabou quando a velhota morreu e ele teve que ir para junto da mãe, que vivia à época com um quarentão abrutalhado. Era jovem, a sua mãe. Quando ele nasceu, fruto de um encontro fortuito atrás de uma qualquer moita, tinha apenas 17 anos. Não aguentou a vergonha ou a responsabilidade e fugiu, deixando-o com a avó. Algum tempo depois voltou à terra, de visita, com um ''marido'', a que se seguiram vários outros. Este último chamava-se Alberto e não gostava de crianças. Ao que parecia, de mulheres também não: batia em ambos, nele e na mãe. O dinheiro evaporava, transformado em álcool consumido avidamente, em quantidades industriais.
Ele fugia ao mau ambiente com a ajuda da ''33''. Montava nela e pedalava horas sem fim, descobrindo atalhos, caminhos, lugares. Sempre só: tinha vergonha dos outros meninos, não sabia o que responder quando lhe perguntavam porque andava sempre com manchas arroxeadas no rosto, nos braços... Não gostava muito de falar. Preferia pensar, passear pelo mato, pelas veredas e ver as plantas, os bichos, o lado bonito do mundo.
Um dia, o padrasto, num acesso de fúria, partiu a ''33''. Ele ficou triste. Chorou, deixou de comer. Passava os dias pelas redondezas, olhando o riacho, sentado numa árvore, sempre por perto. Preso, como o pássaro a que se cortam as asas.
Quase nem notou que a mãe, que nunca trabalhara, por vontade expressa do tirano, passava as manhãs fora, mesmo contra a vontade (e a força) do padrasto. Cada vez mais metido consigo mesmo, absorto num mundo só seu, não notava nada, nada lhe interessava.
No Natal, habituou-se a não esperar presente algum. Como nos natais anteriores, a consoada terminaria em porrada, gritos, choros e, no dia seguinte, uma monumental ressaca do padrasto, com inerente mau humor. Não se enganou. A consoada foi como previra. No dia seguinte acordou cedo e saiu para o quintal. E ela estava lá: um sonho! Uma bicicleta enorme, prateada, toda reluzente, com mudanças e tudo! Montou com dificuldade, mas apanhou-lhe o jeito e, rindo, ganhou a estrada, com um grito surdo de felicidade encravado no peito.
Pedalar, tinha que pedalar. Tinha que ganhar, seguia isolado, tinha que ganhar a etapa. Queria vencer a prova, montado numa bicicleta topo de gama, mas sem esquecer nunca a bicicleta prateada, aquela que a mãe lhe dera num Natal anos atrás. E sem nunca esquecer a mãe, agora que já faltava pouco, muito pouco, para resgatar a mãe do inferno em que ainda vive e que ele já viveu. Mais um pouco, mais um derradeiro esforço, força nas pernas e a etapa está ganha. A etapa e o desejo de dar à mãe uma felicidade tão grande quanto a que ele sentiu quando saíu para o quintal e viu uma enorme e reluzente bicicleta prateada.
Que baptizou de ''Esperança'' e lhe devolveu o Mundo.
2 comentários:
"Lhe devolveu o mundo" é uma imagem muito forte.
Podemos não sair do mesmo sítio e, ainda assim, ganhar o Mundo. E quantas vezes, na «ponte aérea», entre destinos paradisíacos, vamos perdendo Vida...
Obrigado pela visita.
:-)
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