06 junho 2010

PLANÍCIE

Os minutos caiam-lhe sobre o rosto um a um. Cravavam-se-lhe. E mordiam-na. Mal sobrava espaço para as lágrimas, que rolavam e desenhavam no chão poeirento um pontilhado de horror. Que o Sol inclemente tratava de apagar rapidamente – não fosse o Mundo descobrir…

A expressão ficou lá atrás, antes do trilho pingado. E na cara trazia um vazio, onde tudo cabia, onde se podiam escrever os diários de toda a gente do planeta. E ainda assim sobraria espaço branco, como uma folha que se oferece à tinta da esferográfica.


Branco, branco, branco. Procura o branco, imaculado, com o olhar negro, que traz pesado. Branco! Uma nuvem que fosse, no horizonte que foge ainda mais do que ela. Uma flor, uma cegonha de asas alvas… Resta-lhe o dos olhos. Mortiço, carcomido pela escuridão da alma que se lhe derrama do olhar.


Em frente. Olha em frente, e caminha num movimento perpétuo e inexistente. Que se tem caída, pernas nuas sobre o resto da seara, testemunha sibilante, cúmplice só por estar ali naquele momento. Por entre a ondulação que o vento ordena, as espigas tentam afagar-lhe os cabelos e o sussurro é afinal canção de embalar. Para abreviar os minutos que agora se lhe espalham pelo corpo todo, mais, muitos, tantos! Sangra….


O sangue ofende a terra de pó, nascida de caules dourados e vestida de luz e do verde das daninhas que as mãos já não mondam. Vermelho, o Sol não o apaga, mas o tempo tratará de o absorver, de o fazer pequeno, inexistente. Bebido pela terra, sobre ele não vingarão sementes. Ou – se alguma se atrever – morrerá à nascença. Ressequida. Numa expressão de folha de papel que rejeita palavras que não sejam verdade.


Os cabelos, desmanchados, juntam-se à seara na dança da brisa e cortam-lhe o olhar. Sem o perturbar, fixo que está. Lá ao fundo, no horizonte que não pode ver por entre o mar dourado que a esconde, que tudo esconde, que esconderá quem a desmanchou e ali a deixou. Lá ao fundo, no fundo de trás, deixou-se quase inteira. Só trouxe as lágrimas que não quiseram ficar. E o sangue, que a persegue, que a obriga a enfrentar a luz do dia que encandeia na busca do branco da vida. Enquanto se lhe acinzenta o mundo.


Os girassóis, metros atrás, bocejam e denunciam. Mas só a chegada da noite. Que não podem gritar «horror»! Que não podem escrever «horror»! Que não se podem fazer leito para a carregar até à beira da estrada, para que a vejam e a acudam. Os girassóis obedecem cedo demais à noite que se aproxima, cabisbaixos com o Sol bem alto. Envergonhados que estão. Chocados até lâminas motorizadas lhes darem destino igualmente cruel. Agradecidos pelaa memória que não têm.


As formigas, gulosas do sangue, juntam-se aos minutos. E invadem-na. Descobrem-lhe o corpo violado, espancado. A metros de distância da alma já morta. Arrastou-se e no rasto de sangue desenham auto-estradas. Picam-lhe o corpo massacrado dos minutos, procuram-lhe lágrimas para beber, o sangue já todo do chão.


Passou uma nuvem solitária. E no branco do algodão – com o derradeiro olhar - ensopou a alegria da menina que só foi correr pelas searas e que se deixou deslumbrar pelo mar de papoilas vermelhas lá num fundo mais distante. A planície está agora plana de silêncio. O vento passa a mão pelas espigas, pelos girassóis, verga-os e ordena irado: deitem-se! Para que se veja…


O vestido branco rasgado de mãos, a carne jovem rasgada de horror, o corpo ensanguentado rasgando a planície e a papoila – ainda na mão – murcha de tempo que cai em minutos. Sobre o rosto sem expressão. Que até as formigas deixam na Paz da vida que se foi….

7 comentários:

Ricardo Silva Reis disse...

Ufa! Que ritmo! Espantoso.
Gostei mesmo muito. Vou pelo teu blogue abaixo ler-te.
Muitos parabens. Fiquei teu fã.
Obrigado Maria ( foi um comentário no Cheiro da Ilha que me trouxe aqui).
Beijinhos G
Ricardo Reis

M(im) disse...

Ricardo:
Então.... eu também devo um agradecimento à Maria! Por uma porta que fui abrir, depois da tua «batida» de há pouco!
Obrigada!
Espero que o resto do blogue te não decepcione.....
Beijinho
G...

Maria disse...

E eu aqui sem saber de nada... surpresa boa!

Estes texto é fortíssimo, G. Tive de o ler duas vezes, em silêncio total. Para ouvir as espigas de trigo ao vento. E ver o vermelho das papoilas. É aqui que me deito, e descanso, hoje.

Beijos.

Maria disse...

A saudade não se esconde, G. Não é possível escondê-la. Vive dentro de nós, um dia mais tímida, outro mais acesa... um dia dói mais, outro fica atenuada... mas vive sempre dentro de nós. Porque nos corre nas veias, é parte de nós.

Beijo, G.

M(im) disse...

Maria:
É um grito. É um berro largado no vento da seara, à consciência de todos os crimes que ficam impunes.
Ainda bem que gostaste.
Gosto sempre muito que gostes.
Quanto à saudade....
Eu sei. Ai, se sei!
MAs apetece tanto tanto escondê-la às vezes!

Beijo, Maria. Beijo

Mar Arável disse...

e assim acontece uma prosa poética

musical numa viagem de conteúdos

para ler devagar

e só depois voar nas frágeis pétalas das papoilas

Bj

M(im) disse...

Mar Arável:
Fiquei... sem palavras. Só a voar nas pétalas frágeis das papoilas, com um sorriso que não se vê do Mundo!
Obrigada!
Beijinho