02 março 2010

ESTAREMOS DE VOLTA, À UMA, PARA AS NOTÍCIAS.

(do fundo do baú: texto publicado - 2º prémio de texto - no extinto e saudoso DN Jovem)

São incríveis as peripécias que têm lugar numa rádio, principalmente numa pequena rádio local. Falo com conhecimento de causa: com 16 anos fui a escolhida do meu liceu para frequentar um estágio numa rádio local da Amadora. Escolheram o melhor aluno de cada liceu. E lá estava eu, numa rádio, sem sequer imaginar as coisas incríveis que poderiam acontecer. Mas aconteceram. Sim, aprendi muito, com experiências, cuja intensidade variou desde o hilariante ao petrificante.

O método de ensino para os estagiários consistia na técnica do terror, ou seja, colocavam-nos perante as situações e nós que nos desenrascássemos. Um pouco drástico, este método, mas eficaz. Eu não consegui escapar às várias ratoeiras do percurso. O estágio começou na redacção e, acreditem, ali se passam muitas coisas arrepiantes. Ultrapassada a fase inicial, seguiu-se um período de acalmia, de habituação aos imprevistos.

Quando eu pensava que tinha passado já por todos os sustos possíveis, novo tratamento de choque: os directos do exterior! Para os imprevistos do interior, estava eu vacinada, mas para reportagem na rua... A prova foi o baptismo. Nunca tinha feito reportagem na vida. Até que me deram um gravador, uma fotocópia do telex que noticiava o evento e me mandaram, sózinha, para o Palácio de Belém, cobrir o encontro do Mário Soares com um ''big boss'' alemão, no âmbito de uma grande cimeira internacional. Era uma grande responsabilidade, que só me foi incumbida, porque os (poucos) jornalistas mais experientes iriam cobrir outros encontros, de maior importância ainda, num hotel lisboeta. Recomendações: tentar pôr o gravador em frente das câmaras de TV (publicidade, a quanto obrigas!) e, assim que obtivesse a declaração que considerasse mais importante, seleccioná-la, correr para a sala de imprensa e, pelo telefone, enviá-la para a rádio. Parecia simples. E foi, sem contar com uns ''probleminhas''. Primeiro, troquei a sala de imprensa pelo posto da polícia. Nada grave. Chegada à sala de imprensa, deparei com um autêntico bando de jornalistas, muito bem enturmados, bebendo café, conversando descontraídamente. Eu tentei descobrir um cantinho onde me esconder e tentei passar despercebida, mexendo no gravador, verificando o material. Mas tanta inexperiência não poderia passar sem ser notada. E um jovem repórter de um jornal conhecido meteu conversa. Eu fazia-lhe recordar a primeira vez que o lançaram às feras. Sentiu-se desorientado, percebia como eu me estava a sentir. Simpático, disse-me para o seguir. Para onde ele fosse, eu ia também. Quando visse um grande molho em volta de um homem, devia meter o gravador lá para o meio e pronto, nada mais fácil! Senti-me mais tranquila. E fomos conversando.

O pior foram os falsos alarmes. Estávamos à espera no jardim do palácio e, volta e meia, desatavam todos a correr para o corredor. Lá ia eu atrás do Miguel, para concluirmos que fora um empregado que entrara, um polícia, enfim, qualquer um menos o tão esperado político alemão. Até que vi o Miguel sair de mansinho. Segui-o, também de mansinho, pensando que ele sabia de algo que o molho luso-estrangeiro ainda não tinha notado. Um furo a meias, pensei. Mas pensei mal, porque ele entrou por uma porta e quando viu que eu ia entrar também, disse:

-Aqui, é melhor não. A casa-de-banho das senhoras é no outro corredor.

Parece que, afinal, tinha que passar sem o furo! E arranjar coragem para olhar de novo para o Miguel sem corar. Que gaffe!

O ''Mister importante'' chegou finalmente. Sinceramente, não lhe vi o rosto, sequer. O meu metro e sessenta não permitiu. Perdi o Miguel de vista, mas meti o gravador para o molho. E senti alguém ajeitar-me a mão, deliberadamente. Não foi um toque casual. Quando o primeiro jornalista se dirigiu à sala de imprensa, calculei que o mais importante já tivesse sido dito. Fui também, rebobinei, escolhi a última frase e liguei para a rádio. Parece mentira, mas a verdade é que, já com o editor em linha e tudo pronto do lado de lá para gravar, o gravador não dava nada! Estava fanhoso, mal se percebia o que diziam. Saí de lá a correr, sem me despedir sequer do Miguel. Tinha que chegar à rádio o mais depressa possível. Como se tudo o que já acontecera antes não fosse suficiente, perdi a camioneta e tive que esperar 40 minutos. E o gravador sem dar nada! Não funcionava, pura e simplesmente!

Cheguei à Amadora, mais furiosa que qualquer outra coisa. Quase subi às paredes quando descobri que o problema com o gravador eram as pilhas: sim, deviam tê-las recarregado, mas por qualquer motivo não foram recarregadas.

Felizmente, com novas pilhas, a gravação era perceptível, o registo foi para o ar, embora tardiamente. Felicitaram-me pelo trabalho. E é claro que eu não lhes contei os pequenos precalços.

No dia seguinte cheguei à rádio e voltei a ouvir elogios. Fora de tempo, pensei. Mas se tivesse visto TV no dia anterior tinha descoberto o motivo: na reportagem da televisão o gravador da rádio estava em destaque, em primeiro plano. ''A míuda tem jeito'', diziam, enquanto eu agradecia a quem quer que tenha sido que me deu o jeitinho no gravador.


PS: pode parecer que o anterior é ficção. Na verdade é apenas um retrato verídico daquilo que se passa numa pequena rádio local, com falta de meios e de pessoal. Tudo se passa um pouco ao acaso, numa espécie de caos organizado. Mas como ''escola'' funciona. Ao medo segue-se optimismo e auto-confiança. Mesmo que quando pensamos nas coisas que aconteceram, sejamos levados a pensar se terá sido mesmo verdade...

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