O som estridente e monótono da chaleira esgueirava-se pela fresta da porta fechada. Tocou a campaínha. Não abriram. estranhou. Esperou. Voltou a tocar. Uma. Duas. Três vezes mais. Ela não se pode ter esquecido do recado que deixara à secretária: «Em tua casa, às seis da tarde». Uma dor de cabeça, decerto. E o inevitável comprimido, claro! Impaciente, insistiu na tortura do botão da campaínha. Que demora!
O instinto -que é instinto porque não se controla- emergiu no pontapé violento na porta. Que se abriu...
O insistente ruído era agora mais forte, como se, pela persistência, procurasse dar o alarme. Alarme! Que parvoíce! Filmes policiais a mais, claro está... Mas o arrepio?!... Parvoíces! Mariquices, diria a sua mãe já falecida. Mariquices...
Os passos, tornados hesitantes pelo arrepio -parvoíce, mas instintivo, incontrolável- escondem o seu ruído, enroscam-no no grito já irritante da maldita chaleira. A chaleira! Claro! É preciso apagar o lume. Mas os passos -ou o arrepio- guiam-no para a sala.
Da sala ouve-se aquele lamuriar desconsolado, inconsolável da chaleira. Chamou em voz alta: «Maria! Maria!!! Maria...». Não, também não estava no quarto. A cama estava feita. Havia flores sobre a cómoda. E também no chão, junto do amontoado de almofadas em que gostavam de tomar vinho branco, champanhe, trocar abraços e...
Saíu. Decerto para comprar o último detalhe: o vinho, bombons (aqueles deliciosos, com recheio sortido de menta e licor...), quem sabe caviar? Todas as extravagâncias eram permitidas -e possíveis. Então estava tudo bem, óbvio! Bastava esperar. E, já agora, apagar a chaleira que cada vez mais, berra, grita, chora e soluça inexplicavelmente.
Tocaram à campainha. Era ela! Correu para a porta. Tonta! Saíu, deixou a porta mal fechada e ainda por cima esqueceu-se da chave! Sorte a sua ele ter chegado antes dela. E ter dado com a porta encostada... O rosto perfeito, nariz fino, olhos verdes, lábios generosos, vermelhos, transfigurado em rugas, pés-de-galinha e uma verruga no queixo?!!! Afinal era só a porteira...
«Aqui tem o tal vinho francês que a Senhora D. Maria me pediu para ir comprar. E aquela coisa esquisita... ca... carv... olhe, é qualquer coisa parecida com carviar, ou casviar, ou... sei lá! Olhe lá, porque é que não apaga o lume? Há quase uma hora que estou a ouvir o raio da chaleira! E a D. Maria? Onde está?».
Estranho... Afinal ela não saíu. A chaleira, há uma hora?!!! Olhou em redor e já a porteira se esgueirara para a cozinha. Fez menção de a seguir, mas o grito paralizou-o.
O choro da chaleira calou-se. Substituíram-no o da porteira e o seu desespero. No chão gelado, ela estava ainda mais gelada. Inerte. Fria. Ela... ela estava fria!!! Era por ela que a chaleira carpia, chorava, desesperava.. Era por ela o arrepio!... Pela faca que soltara o sangue dos pulsos.
Porquê?! Estava tudo tão perfeito! Era tudo tão... perfeito! Porquê? E o caviar? As flores no quarto, junto das almofadas onde gostavam de... O vinho francês?
Medo, fuga ou simplesmente instinto -instinto que é instinto porque não se controla?
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