02 março 2010

O LAMEIRO DO CHÃO VERDE

«Mas...afinal em que é que ficamos?!», rosnou o Chico Pinguinha, marido da Clotilde. O burburinho alastrou e contagiou a janela, que bateu furiosamente. «Fechem essa merda! Ainda se partem os vidros!», vociferou uma voz estridente entalada num qualquer canto da sala.

Os rostos apinhados trocavam olhares e hálitos de pinga e de alho, misturavam-se cheiros de terra e de gado. A janela fechada impedia agora a ventilação da sala principal da Casa do Povo -um quartinho quase minúsculo, suficiente para a população escassa- e o cheiro de suor apoderou-se do espaço, fazendo esquecer todos os outros.

«É preciso tomar uma decisão, arre, bolas! Calai-vos e puxai pela cabeça!». O Chico Pinguinha mudava de coloração gradualmente, o que era perigoso quando a mudança tinha causas que não o vinho ou o bagaço... «Afinal, somos homens ou bichos? Arre, maricas! Mais parecem cordeiros ou bodes chifrudos!». A fogueira da ira, espicaçada pelo verbo rude e irritado do Pinguinha, crescia em labaredas vivas e intensas.

«O Lameiro do Chão Verde é do Armindo!», soou uma voz quase histérica e fina de mulher, «É dele e de mais ninguém!», apoiou um rugido rouco de cabelos brancos.

«Mas vamos entrar em guerra, carago! Já pensasteis nisso?», protesto tímido do Cipriano -primo da sobrinha do Anacleto que é filho do Adérito, Presidente da Junta de Pedras Negras- homem abastado e possuídor de dez lameiros e para mais, pretendente da Zefa da Anunciação, nem mais nem menos que afilhada do Adérito...

«Pois venha a guerra, que se lixe, carago! O lameiro é do Armindo, se é dele é nosso, é da aldeia! Conosco não se brinca! E eu levanto a minha enxada contra o raio do Anacleto! Que vá roubar lameiros aos de Pedras Negras, mas que deixe os nossos em paz, Jasus ma valha! Que não se metam conosco, raios! Senão...». O Chico Pinguinha, ilustre Presidente da Junta de Freguesia de Águas Belas, defendia a sua dama e deixava-se dominar pela ira que o enrubescia cada vez mais.

«Nas nossas casas, nas nossas terras e nas nossas mulheres, há-de vir o primeiro que lhes toque e verá!». O Jaquim Vistas-curtas não percebeu o motivo da gargalhada geral que seguiu a sua intervenção, menos ainda o súbito vermelhão das faces da Marcelina, esposa do ingénuo cornudo.

«Apoiado!», ergueu-se a voz do Pinguinha. E deixou entrar a ventania. Os outros seguiram-no porta-fora, bordões e enxadas debaixo do braço, contagiados pela ira não alcoolizada do Presidente. Era a guerra contra Pedras Negras, aldeia vizinha, de gente desleal e invejosa.

Na missa de domingo, o Padre Hipólito lamentou os feridos e prometeu benzer o Lameiro do Chão Verde, fértil de erva todo o ano, mas acima de tudo, novamente propriedade do Armindo e de todo o povo de Águas Belas.

Hoje, o Lameiro do Chão Verde está abandonado. Não são ervas, mas silvas que lá crescem. Ovelhas quase não existem e há pasto de sobra para as vacas que resistem aos subsídios das Comunidades Europeias. Já não se levantam enxadas e bordões em defesa de um palmo de chão nessa terra com que costumo trair a cidade em que nasci. É lá que gosto de me esconder nas férias, fugir da civilização, encontrar-me com a liberdade. Estão a morrer, os velhos que restam; as casas de granito asfixiam entre os «mamarrachos» germano-afrancesados dos emigrantes. Mas o que resta ainda é puro, genuíno. Enquanto ainda existirem os laços ténues que prendem aquela aldeia ao passado, posso identificar em cada recanto, em cada janela, em cada caminho e vereda, as histórias enfeitadas de História que o meu avô, ancião de cento e três anos, tem a paciência e a alegria imensa de me contar junto à lareira de uma casa de granito. Histórias do passado trazidas à força para o futuro num fio frágil de palavras encadeadas. Histórias importantes -importantíssimas- como a célebre guerra com Pedras Negras pelo Lameiro do Chão Verde, marco histórico da aldeia de Águas Belas, que é como quem diz, da terra que adoptei como minha. É que Lisboa é de muita gente. E aquele cantinho é quase só meu...

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