Flutua. Numa ausência de gravidade. Sem força na ausência de forças. De olhos fechados, corpo nú, relevo numa superfície horizontal, abandonado de si, partilhado num plural que o faz realidade. Lábios entreabertos, enfeitados de sons que tudo devem ao sentido, tomados pela vitória dos sentidos. Plenos de fúria doce, transbordando desejo. Interminável arrepio, sem rumo previsível, ora lhe percorre o corpo, ora lhe desflora a alma. Enquanto flutua…
Foi num dia qualquer. Espartilhado de rotação. Denso de gente, da que se quer, da que se dispensa. Um dia de teia, como todos os outros, já resignada à certeza de que, como a mosca, quanto mais se debater, mais aquela vibrará, alertando as aranhas da vida para a presença de presa. Um dia nem frio nem quente, nem chuvoso nem solarengo, grave de quotidiano, subia uma escada, certa do destino, recordando a lição do manual dos dias normais, decorada de véspera. Tão absorta que quase não via…
O frio da parede branca relembra-lhe que o seu corpo tem existência física - embora pareça não ter peso - e o curso das gotas de suor que ganham a liberdade é interrompido pelas mãos que o percorrem, que dele fazem música, transformado que está em instrumento, de cordas tensas, que vibram mal se afloram. O calor que se lhe cola por trás aniquila a parede e o seu frio, num trópico de inconsciência do mundo, de imersão total nos momentos, nos estímulos.
A buzina daquele carro fazia parte dos Imprevistos, último capítulo do Grande Manual. Que não havia lido. Quem lê os últimos capítulos afinal? Desconcentrada, libertou o olhar na fracção de segundos em que o objecto passava. E num acto de rebeldia insólito, deitou-lhe a mão, cobrindo-o de curiosidade.
Cansadas, as cordas fazem-se fios de lã, enrolados em novelo de ternura, indistintos de posse, de dono. O pintor não conseguiria pintar os corpos abandonados sem os mutilar de sentido. O escritor não teria como descrever as palavras não pronunciadas. O escultor não ousaria tocar a obra de arte (nem com o mais delicado cinzel). O erudito não teria imaginação para criar a definição que ainda está em falta em todos os dicionários.
Segurou o fio, sem considerar largá-lo, apesar de se sentir elevar no ar. Com as duas mãos, crispadas de medo. Trepou o suficiente para nele enrolar um pé, como fazem os trapezistas. Olhou para baixo, e a nova perspectiva devolveu-lhe um aglomerado de figuras geométricas, contidas, desenhadas para conter gente fisicamente assimétrica, métrica no ser. Içou-se, a custo, até à superfície arredondada que feria o ar à sua passagem, instalou-se no topo bojudo e levantou a âncora do olhar. Havia mais balões no horizonte. Vários… Tantos!!! Quase um mundo paralelo, outra dimensão, um potencial universo, visível a olho nú, sem grilhões na percepção. Contudo… Não viu vivalma! Ninguém lhes teria deitado a mão?
O abraço condensa tudo o que foi, embrulho de papel fino com laço de seda. Fogo: solta-te, lança-te sobre o mar, incendeia-o, liberta-o também em gotículas de êxtase e deixa-o inundar a terra ressequida de prazer, de alegria. Que a plenitude existe, em balões coloridos, redondos – aos milhares num plano paralelo – onde se pode flutuar dentro de si próprio, assim que se consegue deitar a mão à coragem. Aos pedaços, como rebuçados, que a Gravidade cria a falta, o contraste oferece o valor. Fica um beijo por desembrulhar. Fica sempre um abraço por apertar, um sorriso por iluminar. Fica a eterna vontade flutuar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário