Amarrotou a folha, mão crispada na única manifestação da velha raiva que sempre se permitiu. As veias salientes nas mãos longas, um pouco manchadas de idade, os dedos finos, só ossos e tendões dominando um simples pedaço de papel. Inocente. Tirou os óculos, esfregou os olhos cansados, engoliu em seco o fel de uma tristeza quase gasta. Olhou em redor, com o olhar vencido pela miopia, acutilante na busca, na eterna atitude crítica perante tudo, perante todos. Observava por defeito, para absorver, para criar. Agora, também para viver mais do que a sua vida.
Aos Domingos, o sítio do costume. Os jornais do dia, cedinho pela manhã, saboreados com café, como quem molha a torrada no líquido quente, primeiros alimentos da mente (a mais ávida) e do corpo. A análise comparativa dos conteúdos (incontornável, como um sentido obrigatório) misturada com a ira perante a banalização da forma, a superficialidade das abordagens, os erros ortográficos e gramaticais.
A cadeira já se lhe afeiçoou, assim como a mesa estrategicamente escolhida, no canto mais elevado e discreto, com vista para a sala bem decorada. Os empregados mimam-no com sorrisos, antecipam-lhe os pedidos - «mais um café? Já pode sair a torrada?» - sente-se em casa. O assento é poltrona, onde se instala e observa pedaços de existências alheias como se visse televisão depois do jantar. Bloco de notas a jeito – não vá algum episódio ser digno de nota – e o cenário está montado para a sua manhã dominical.
Depois dos madrugadores do pequeno-almoço, raros, normalmente sozinhos – rápidos e intensos, como os anúncios - surgem a meio da manhã os primeiros casais, transpirando no toque permanente a doçura lânguida de quem abandonou os lençóis ainda quentes de partilha. Novos, velhos, contam o tempo em segundos ou horas, sorvem-no em tragos ou bebericam-no com a sensação de que não há pressa. Juntos. A dois. Numa manhã preguiçosa de Domingo.
Gargalhadas e altercações estridentes denunciam as primeiras crianças. Irreverentes, cativantes, erupções de energia e alegria pura em contraste com o ar ensonado dos pais, tentando sintonizar aquela estação – onde está o canal? – ou procurando desesperadamente o interruptor do som, na ilusão de aliviar a agressão dos decibéis a uma noite mal dormida. Nem notam nas olheiras o brilho que acrescentam ao sorriso que nasce após cada repreensão com semblante sério:
- Shiuuuu!!! Mais baixinho! Olha: a mamã trouxe-te os lápis de cor. Faz um desenho para mostrar ao Pai. Um desenho bonito!
Um olhar cúmplice, nos dois segundos de silêncio que os lápis conquistam, para logo se entregarem à supervisão da prole. Juntos. Numa refeição conturbada, barulhenta, feliz aos bocadinhos.
Entre o bloco e a alma, vão ficando notas. Para misturar com tantas outras e permitir à mente – a sua dona – formular teorias, matrizes, padrões... explicar e encontrar razões. Ser incompreendido não significa não ser genial. Só os fracos de espírito necessitam do reconhecimento alheio. Os dotados de inteligência acima da média, «iluminados pela erudição» movem-se, por definição nas sombras, longe das luzes da ribalta. O mérito não é garantia de recompensa. O que não deixa de ser uma pena...
Volta e meia, a blindagem racha e a fantasia solta-se. Imagina todos os manuscritos guardados na gaveta transformados em livros de capa dura, com o título impresso a letras douradas, em lugar de destaque nas bibliotecas de ilustres que o citam, que o recomendam, que o convidam para escrever crónicas semanais em jornais reputados, para tecer comentários em directo, na televisão. Traduzido em várias línguas, teria que viajar, dar conferências, palestras, correr mundo em passos largos, à medida do seu valor, feito de inteligência, muito estudo, espírito crítico de visionário. Abre a gaveta, passa a mão pelos seus tesouros, repara os estragos e consola-se com um livro, na estante - que é muito mais de tantos outros - publicado há muito, nascido da tese de doutoramento. Há mais que um, na verdade. Mais uns quantos guardados num caixote empoeirado, restos de um mau marketing, culpa de uma editora medíocre, que não o soube divulgar. Azar.
Naquele dia já eram horas. De deixar o pequeno escritório onde apenas não dormia e os sonhos que lá guardava. Havia uma turma para enfrentar, cinquenta rostos, maioritariamente amorfos, incapazes de perceber a universidade como uma oportunidade, um campo lavrado de liberdade para as ideias, para a crítica, para a dúvida, num caminho longo para o conhecimento. Salvavam-se dois ou três indivíduos, pela inteligência ou pela irreverência. Era neles que se refugiava, era a eles que se dirigia na esperança de transmitir mais do que o que o conteúdo dos livros – dos outros, sempre dos outros.
Há dias assim. De cadeiras vazias, de ecos sem substância. Na segunda fila, competia com mensagens recebidas e enviadas num telemóvel. Na sexta, com qualquer facto misterioso que manteve as duas alunas muito aplicadas na conversa sobre o mesmo. Lá ao fundo, na última, o sono venceu o aluno. E o professor. Saiu da sala, sem alicerces, desmoronado, deixando para trás, enquanto percorria o corredor vazio, pedaços do cimento das suas fundações mais profundas.
A porta do auditório abriu-se e de rompante um magote de jovens bloqueou-lhe a passagem. Da porta do Grande auditório jorrou uma maré de gente, que inundou todo o espaço livre no exterior. Reconheceu as ausências da sua sala. Quase não lhes identificou as expressões. Afogueados, com o olhar incendiado de uma paixão que lhes desconhecia, os seus alunos, entre tantos outros, comentavam em coros desafinados o que alguém acabara de dizer, com palavras como «brilhante», «fabuloso», «inspirador» no fim das frases, em jeito de refrão.
Sentiu-se num caleidoscópio de vida, que o transportou para os tempos em que também ele se deixava fascinar por um orador brilhante, em que a inocência era ainda uma cortina opaca à luz insinuante do desalento. Longas noites de conversa – tantas vezes acesas discussões – sobre um filme que se viu, um livro que se leu, a situação social ou político-económica do país, do mundo. Invariavelmente com o seu companheiro de turma, do quarto que dividiam, dos sonhos que se alinhavam no mesmo horizonte: mudar o mundo com a força da palavra. Companheiros até de utopia..... Mais tarde, juntou-se-lhes um terceiro elemento. E as conversas ganharam fulgor, acrescentavam-se horas às noites e as ideias chocavam num deslumbramento tripartido. A vida era perfeita. Tudo lhes era ainda possível.
Acordou de si num silêncio sepulcral. As portas abertas ofereciam-lhe o auditório num cenário impossível de jovens ordeiros, silenciosos, de olhar expectante fixo no local onde o orador se preparava para retomar a palestra após o breve intervalo. Como o invejou... Qual o assunto? Qual a perspectiva revolucionária, o segredo? Um dom?.. Entrou, e sentou-se na última fila, numa cadeira miraculosamente vazia no anfiteatro apinhado. Aguardou o reinício da sessão com ansiedade e dispôs-se a tentar perceber a génese da euforia, do respeito - até do silêncio - tão incaracterísticos na sua sala de aula.
Se a janela estivesse aberta e uma simples brisa se insinuasse pela cadeira em que se encontrava, tê-lo ia arrastado para a rua, reduzido que ficou a pó. Moído pela inveja, por uma raiva agora ampliada mil vezes. Não bastava lê-lo em todas as revistas da especialidade e nos jornais, vê-lo citado nos trabalhos que tinha que corrigir, tropeçar em pilhas de livros com o seu rosto estampado no verso nos expositores de todas as boas livrarias, saber das presenças assíduas em conferências internacionais, na televisão... O Professor Doutor! O venerado Professor Doutor Marques da Silva. Ali! Esvaziou-lhe a sala, trucidou-lhe a alma. E a sanidade, no momento em que o avistou no seu cantinho improvável e, no final da palestra, se congratulou publicamente pela presença de um colega brilhante e amigo de longa data. Amigo...
Cumprimentou-o mecanicamente, correspondeu ao abraço de outros tempos.
– Então? Há quantos anos?.... Andas desaparecido, nunca mais deste notícias. Que bela surpresa ver-te na audiência. Fantástico! Dá cá um abraço, homem!
Entre a conversa de circunstância aceitou até um livro autografado, motivo da presença e da palestra do Professor Doutor na sua Universidade, na única casa que tinha para a vida que não vivia. «Para o meu companheiro de quarto, de aventuras e de ideais – memórias gravadas numa amizade que não perece com a distância nem com o tempo. Forte abraço, Luís.». Assinou só o nome de quando ambos nada eram. Teve essa comiseração para com a sua insignificância. Ou pretendeu feri-lo?...
Nesse dia, divorciou-se da paixão com que ensinava, com que buscava nos alunos com potencial os filhos que não teve e neles investia toda a sua capacidade de se dar, da única forma que conhecia, partilhando o que sabia, esse tesouro que lhe custara tudo o resto. Deixou-se arrastar para a dimensão dos que trocam mensagens, comentam telenovelas ou dormitam discretamente nas suas aulas. Perdeu a capacidade de se entusiasmar com uma argumentação ousada e pertinente num teste, de se deixar impressionar por um aluno genial, daqueles que só aparecem de vez em quando. Tornou-se um espectador da vida, certo que as suas palavras não mudariam o rumo de uma mosca, quanto mais do mundo. O livro autografado ganhou um lugar na estante, ao lado do seu. Por pura ironia.
Aos Domingos, tenta viver. Com o pretexto de recolher elementos para o livro que jamais conseguirá arrancar de entre infindáveis camadas de destroços, sem alicerces, consumidos num fogo permanente de frustração e inveja. Podia ter sido ele. Devia ter sido ele. Entre rabiscos e anotações, observa e ocasionalmente consegue esconder-se da racionalidade tirana, cruel.
O casal da semana passada regressou. Vêm zangados: o olhar dela é todo da revista que folheia sem ler e as mãos dele não largam o jornal. A menina dos olhos verdes, com os totós a condizer com o sorriso maroto entrou a correr, endiabrada, seguida pela mãe, numa perseguição divertida, que não poupa o pai embevecido. Vieram cedo, hoje. Dois estudantes -num pequeno-almoço muito tardio - tentam acabar um trabalho, numa luta contra o barulho dos gémeos desdentados da mesa ao lado, que disputam a playstation em birras intermináveis, que já só merecem o desprezo dos pais. Ali, na sua cadeira da última fila, onde poucos o percebem, rouba pedaços de vida sem que ninguém dê por nada. Ninguém... é tudo o que tem, mais tudo o que sabe.
Quase todos os Domingos há algo que dá verdadeiro sentido à folha de papel. Um casalinho particularmente transparente na forma como se olha, com paixão de Primavera. Um casal de Verão, filhos a tiracolo, um todo partilhado, pleno. Um Outono que não apagou sentimentos e que une duas mãos enrugadas num gesto de carinho sem tempo.
A senhora grisalha empurrou a cadeira de rodas até à mesa. Assegurou-se que o marido estava confortável, passou-lhe a mão pela prata do cabelo, apesar do olhar ausente e do tremor permanente no corpo abandonado. Quando a refeição chegou, alimentou-o como se de um bebé se tratasse, com desvelo, não obtendo, como reacção, mais do que um abrir e fechar de boca, trémulo, automático. Mas ainda assim insistindo em encontrá-lo algures, longe na sua demência. Um Inverno chuvoso de amor. Que nesse dia despertou o impulso, e como tantas outras vezes, fez uso da folha para além dos rabiscos: «Sabes, quero dizer-te... há já tanto tempo! Quero-te! Desde sempre, desde o princípio do nosso tempo. Amo-te...» E mal escreve a palavra, a mão solta a caneta, agride o papel, no movimento de sempre, na impotência do «para sempre». Mais um pedaço amarrotado de amor escondido, pontaria certeira, cesto perfeito no caixote do lixo. Mecanizado numa tristeza com excesso de uso.
Mais um Domingo e o ritual estava próximo do fim. A velhinha terminava a sobremesa, enquanto brincava com a menina dos olhos verdes, que não entendia porque é que o senhor na cadeira de rodas não respondia às muitas perguntas que lhe fazia:
- Mas ele gastou as palavras todas? Eu empresto-lhe algumas das minhas!
- Não incomodes a senhora... – avisava a mãe, apenas por cortesia, percebendo o sorriso que a atenção da filha emprestava à senhora que a idade ainda não havia vencido totalmente.
A sala cheirava a café e o ruído dos talheres amenizava-se. A tarde de sol convidava a um passeio ao ar livre e os presentes não se fariam rogados. O espaço sem clientes implicava o regresso do seu próprio vazio. Fazia-se tempo de o abandonar, depois de um último café. Mas a porta abriu-se e uma agitação invulgar estilhaçou a rotina. Os empregados, solícitos, indicaram uma mesa no lado oposto da sala – a melhor - onde apenas os divisava de costas. Maldita miopia!
Timidamente, um empregado pediu um autógrafo. A velhinha devota deixou o marido à mercê da pequenita endiabrada, para regressar sorridente e passar a folha rabiscada em frente do olhar senil, que não reagiu, como sempre. Algumas interrupções depois, o casal pôde finalmente saborear a refeição em paz, apesar da hora tardia. A normalidade acalmou-lhe a curiosidade e reforçou a ideia recorrente de que não se pode ser figura pública e estar descansado em lado nenhum. De onde estava não lhes podia observar as expressões, os gestos, não havia pedaços de quotidiano para roubar. Foi ficando, porque todos se deixaram ficar. Retomou a leitura de um jornal um pouco negligenciado nessa manhã, quase agradecendo aquele inesperado prolongamento do seu Domingo.
Absorto, não se apercebeu da aproximação:
- Inacreditável! Tantos anos e agora não há fome que não dê em fartura! Estás bom companheiro?
Estremeceu.
- Olá, como estás?
Sentiu-se morrer.
A voz: o tempo não lhe sorveu a doçura. No rosto, suaves linhas marcam histórias, sem lhe roubar a beleza, incólume no conjunto harmonioso. Passou-lhe com decência pelo corpo firme, o tempo. Só não lhe encontrou o olhar voluntarioso, fogoso, todo ele entrega, todo ele dádiva e alegria. Aquele, o das longas noites de utopia tripartida. Perdido ou guardado?
Amo-te! Pensou. Amo-te! Quis responder. Amo-te! Gritou no silêncio aberto pelos seus lábios, que não lhe obedecem hoje, como não lhe obedeceram no tempo que era seu. Amo-te! Disseram os seus olhos. Amo-te! Reflectiram as lágrimas que nunca conseguiu chorar.
- Dá cá um abraço, companheiro!
Deu.
- Então, não dizes nada? Lembras-te da Leonor, não lembras?
A Leonor. Que ignorou na ânsia de ser genial. Que negligenciou por ser uma distracção para o espírito. Que um dia lhe disse «Amo-te» numa folha de papel antes de viajar para longe, em busca de um doutoramento. De quem teve notícias pelo Luís, que teve ideia igual. Até deixar cair o contacto, num fim voluntário ao trio das utopias. E afinal... escondida na inveja pelo reconhecimento académico e intelectual, a tristeza gasta do que se sabe sem se perceber bem como. A Leonor do Luís...
Buscou-lhe o olhar, bem fundo, até o encontrar. Apertou a mão amarfanhando para sempre a folha de papel e disse-lhe:
- Amo-te. Ontem e amanhã. Desde o início do nosso tempo, quando te juntaste a nós, cheirando a sardas sobre pele branca e ao perfume do teu cabelo ruivo. Amo-te. Num amor que só sabe lamentar o que poderia ter sido e aspirar ao que poderá vir a ser. Que foge do presente, porque foge de quem o sente. Um diamante escondido no leito de rocha negra, estéril e impenetrável, que não consigo deixar de ser. Amo-te. Ontem e para sempre. Perdoa-me, mas nunca te saberei amar hoje...
E abandonou o restaurante, em passos rápidos, sob os olhares expectantes de todos quantos acreditaram verdadeiramente que ele ia dizer qualquer coisa à senhora ruiva, quando a olhou nos olhos por momentos infinitos, sem soltar um único som.
Deixando ao Professor Doutor Luís Marques da Silva uma profunda dúvida e preocupação genuína sobre o estado mental do seu amigo, do companheiro de outrora.
E à Leonor, à sua Leonor, um vazio preenchido e um sorriso ambíguo no rosto.
Não houve Domingo seguinte. Não regressou. Só os empregados deram pela sua falta. Ou seria pela falta da gorjeta generosa do costume?
Um comentário:
G...,
Parabéns! Uma crónica fabulosa! E ler-te, nesta manhã Dominical, tomei-o como um presente d'alma, neste dia especial para mim (lançamento do 'Essência e Memória II')se puderes, aparece!
beijinhos e um sorriso :)
mariam
nota: com mais tempo, virei passear p'las tuas palavras infra :)
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