Mão estendida, na esquina. Todos passam sem o ver. Como se os raios do sol abrasador encandeassem selectivamente ou como se as gotas da chuva se unissem em cortina para o esconder. Ali, naquela, entre duas ruas perpendiculares, onde todos passamos, com paralelepípedos sujos do suor que se nos evapora nas nossas vidas corridas, cobertos de lama de pó de escape e de lágrimas não vertidas de multidões entorpecidas. Os ombros cederam há muito à gravidade. Às gravidades: a da maçã e a da situação. Descaído, o olhar imita-os. Tombada a alma supera-os. A moeda que cai ocasionalmente não faz eco, padece de solidão. E o olhar de genuína preocupação – mais esporádico ainda – não encontra interlocutor: é assim a miséria, do corpo, do espírito. Um gesto de carinho desarma o alheamento, e deixa uma semente doce. Que não brota.
Enche o peito, na oferta. Mão na anca, andar seguro. Lábios escarlate, que chocam mais do que apelam. Deixa-se de ver a saia quase inexistente quando se aproxima do carro e, vestida de rotinas, se debruça sobre o vidro que se abre, o peito em promoção, amostra grátis. Noutra esquina qualquer negoceia-se e de si vende mais do que o que lhe compram, tão mais caro do que o que se paga…. Objecto que se tornou, procura-se desesperadamente depois de cada utilização. Para com indolência se resignar e em várias despedidas diárias ver partir pedaços de si… Na mão, as moedas não ecoam. Recebe em notas, não fazem barulho. Sob o tecto confortável, a chuva não molha nem oculta, o sol não fere a vista alheia e, para o corpo, alimento não falta. Mas as linhas cruzam-se na mesma posição geométrica e a encruzilhada repete-se, mostrando um interior de terra ressequida, por lavrar, estéril, numa incomensurável miséria de ser que só o álcool consegue afastar. Por pouco tempo. Até ao fim do tempo.
O brilho do metal fere a obscuridade. Ali, onde duas ruelas se cruzam, numa esquina que mal merece o epíteto, oculta pelos arbustos minguados entrelaçados de lixo, a luz envergonha-se e ilumina menos. O ar sufoca de tristeza e adensa-se do fumo e suores de estimação. Em redor há vida, há gente, há mundo, mas tudo se lhe resume ao brilho do metal no momento que antecede o movimento rotineiro de violar a veia, hoje uma diferente, tantas outras se recusam já, exangues. Todo um dia, tantas horas, minutos divididos a pensar nos segundos em falta para aquele momento, para o tempo de desligar sinapses, de se abandonar, de se anular. Hoje, um reflexo extra, a seringa ganha vida, solta-se da veia que forçou e num lampejo ténue, mostra luz. Como se celebrasse a vida que roubou, numa dessas esquinas diferentes, onde duas linhas que se intersectam não abrem, na perpendicular, duas escolhas. Apenas apontam, como duas inexoráveis setas, para um destino que não se contrariou.
Com crueldade inesperada o espelho devolveu-lhe uma estranha nessa manhã, quase tarde. Não se reconheceu nas olheiras, no desalinho do cabelo, tingido nas raízes de prata muito pouco preciosa, na pele que nada reflectia, reduzida à função de invólucro. A água não lhe percorreu o corpo com o desvelo costumeiro, desfazendo-se em gotas que optavam por cair longe, após uma passagem fugaz de asco. Como se preferissem o esgoto, seu destino conhecido. Em greve, o corpo declarou falência e o pequeno-almoço não resistiu ao vómito. Desfaleceu.
Despertou fora de horas e de vontade. Escondida numa roupa discreta saiu para a rua, frágil, sem a armadura da exposição física. Desceu a avenida e levou a mão ao bolso, em busca de uma moeda, que caiu, surda, naquela mão perpetuamente estendida. Afastava-se já quando se apercebeu. No alto dos saltos teria prosseguido. Mas a ausência de som… nem um eco do obrigado suposto, nem uma sombra de voz.
As luzes descaradas feriam-lhe os olhos, e as pálpebras, normalmente baixas, acocoravam-se ainda mais sobre os olhos. O ruído metálico dos talheres era uma lembrança distante nos tímpanos entorpecidos do zoar dos carros. Misturados com as vozes - «Sai um bitoque para a mesa noveeeeeeee!!!!!» - causavam-lhe náuseas. E aquele olhar pousado em si: doía. A tigela fumegante de sopa mal repousou na toalha limpa, o arroz de pato recordou-lhe outras refeições e a sobremesa forçou as memórias dos almoços de Domingo, com mesa posta, depois da missa. Com sorrisos da filha transformados num abraço comprido, quando depois da refeição viam televisão tarde fora, nos Invernos de Vida.
Por onde andaria? Que som faria o seu passar, que cheiro deixaria numa mão que se lhe estendesse, de pedinte? Teria no rosto a expressão ferida, fotocópia da fisionomia que o observava enquanto comia? Foi-se, junto com a mãe num abandono previsto, jamais esperado. E na esquina a que a vida o conduziu, no meio dos rostos anónimos, quando ousa levantar o olhar, são os seus olhos que procura, com medo de os encontrar um dia. Os que o fitam estão perdidos. Buscam rumo.
A avenida tornou-se o itinerário habitual no caminho para a vida. E a refeição – normalmente um lanche – substituiu a moeda. E o olhar, devoto ao empedrado horas a fio, ergue-se agora depois das duas, alimentado de dignidade. Ela viu para além das roupas andrajosas. Ele viu para além do exposto. As setas perdem assertividade e a perpendicular redesenha-se, pouco a pouco, sob a forma de oportunidade.
Uma tarde – já uma de muitas – num desejo remoído de retribuição, ousou o convite. Surpreendido com a resposta, de bolsos vazios, ofereceu-lhe a sua história, de dor de saudade da filha e de eterna esperança de a reencontrar, entre passos lentos pela cidade que sobreviveu a um terramoto em tempos idos e se recriou. Dia a dia, rua a rua, pedra a pedra, foram construindo uma dignidade, escolhendo um caminho – quem julga o seu reflexo?
À tardinha aquela viela impôs-se, a si e à sua obscuridade mal afamada. Obras obrigaram ao desvio. Unidos numa comunhão invulgar, prosseguiram as partilhas, cada vez mais descontraidamente, cabeças erguidas, fitando horizontes. Distraída por um pássaro que levantou voo, ela, que se deixara ficar ligeiramente para trás, tropeçou, perto do corte abrupto de uma perpendicular rendilhada de arbustos e lixo. Ele ajudou-a a erguer-se, solícito e seguiu caminho, contornando a esquina, com a sua esperança pela mão. Ela viu, de relance, que tropeçara num pé que exagerara o seu direito de ocupar o espaço. E apertou a mão que a amparava com mais força, num agradecimento mudo.
Não viu, nenhum deles, o brilho metálico da agulha tombada no chão. Não perceberam, no seu passo rápido de transeunte enrolado numa vida que já se tem, que o pé pertencia ao corpo de uma jovem de quem a vida acabara de se libertar. Mesmo ali, naquele ângulo recto onde se extinguiram para ela todas as perpendiculares. Não viu, ele, nos olhos abertos no derradeiro êxtase, o fim da busca de tantos anos, e a condenação a uma eterna saudade.
Outubro de 2009
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