Estou?
Algodão doce.
- Quem fala?
Veludo
- A minha mãe?
Seda com areia.
- Quer falar com a minha mãe?
Lixa.
- Um minuto, vou chamá-la!
Arame farpado.
A manhã corria veloz, com o tempo zombando da ansiedade costumeira. Os minutos encavalitavam-se e desmoronavam-se em horas fugidias. E as folhas tinham todas duas páginas, letras pequeninas, diminuindo mais e mais, de propósito para atrasar a leitura. Um dia normal, afinal. A menina que tinha que o ser lutando pela perfeição.
Já o era, não sabendo, e ainda assim lutava. Já intuía a expectativa. Já a decifrava em todos os olhares. Já a colava lá no alto da fasquia, sempre mais alta. Sempre com a sensação de que a vara se partiria no auge do voo e que não haveria colchão para amortecer a queda.
Tudo planeado. Controlado. À prova de falha. O teste mais tarde, a nota acima da média tarde depois do mais tarde, o reconhecimento escondido num olhar fugidio logo a seguir e uma nova expectativa, ou uma velha expectativa, imediatamente posterior. Sem rede. Rotina.
Menos o telefone, na sua estridência, no TRRRRRIIIIIMMMM TRIIIIIIIMMMMMMM metediço. Trrrrriiiiiiiimmmmmmmm!!!!!!
Arame farpado: 14 anos e um teste a seguir e um nervoso miudinho, mais miudinho do que o costume, porque normalmente era uma miudinha com nervoso e não o contrário.
Lixa: 13 anos e nenhum evento em especial, para além de ser o dia, a hora, sempre o dia e a hora em que o telefone tocava e a mão se crispava e o estilhaçaria se ao menos os dedos pequenos tivessem a força necessária. Anualmente, a alegria estilhaçada pelo negro da caixa que tocava e que a tocava na ferida que não sabia sarar.
Seda com areia: 12 anos e um Juiz, lá no alto e negro num vestido que o vestia de imponência e a despia de defesas. «Com quem queres ficar, minha menina? Com os teus pais adoptivos ou com os teus pais biológicos?». Solene, o som da decisão, peremptório. Simples porque não havia o que decidir. «Com os meus Pais. Quero ficar com os meus Pais». Depois de arquear as sobrancelhas numa moldura pintada de impaciência, depois de apontar - dedo em riste na direcção - o Juiz, que devia ser inteligente lá percebeu quem eram os Pais. Como se pudessem ser outros! Como se fosse preciso dizer….
Veludo: 8 anos e a inocência é macia. Mas como o veludo tem reverso, o avesso do veludo é exigência. De perfeição. O que dirão os outros, se os deixar ficar mal? Imaculada, tens que ser um exemplo, uma decisão acertada. Veludo na falta de consciência e consciência da diferença.
Algodão Doce: porque é doce a inconsciência, a liberdade de nada saber, de nada intuir, de não se imaginar sequer que se espera sempre algo de alguém. Mesmo que não pareça. Doce a liberdade de ainda poder não ser.
- Estou?
- Quem fala?
- É a tua mãe, filha.
- A minha mãe?
- Parabéns, minha filha! Catorze anos! Parabéns!
- Quer falar com a minha mãe?
- Mas… filha, eu sou….
- A minha mãe não é? Deve querer falar com a minha mãe. Um minuto: vou chamá-la! Mãaaaaaeeeeeeeeeeeeeeeeeeee! Ó mãe! Anda depressa. Há uma senhora que quer falar contigo.
Engraçado…O Juiz perguntou. E ela apontou. Com o dedo biológico em riste, escolheu numa escolha que não o era. Não hesitou, não tremeu. E não se enganou. Usou a bússola afectiva, o norte do Amor. Apesar da perfeição como preço.
E ainda assim… Cruel, a biologia: 14 anos. Arame farpado. Muro intransponível. Electrificado. Perpétuo. Ninguém tem duas mães. Menos ainda as meninas perfeitas.
- Mãe? A minha mãe? Vou chamá-la!
4 comentários:
Fortíssimo!
Um beijo.
MARIA:
Só podia ser. Este. SÓ podia.
Beijo grande, Maria
Fiquei impressionado com este teu texto. A clareza da bússola afectiva indicou as escolhas, mas também é uma ajuda para os dedos biológicos saberem construir uma narrativa há muito fixada no sentir. É uma interpretação subjectiva que eu faço e, por isso, posso estar redondamente enganado. Mas não me engano se te disser que gostei mesmo muito do teu texto.
Beijos.
NILSON:
Não estás, amigo.
Não estás.
Esta narrativa está-me tatuada nas entranhas. E foi arrancada a ferros para o papel.
Beijo.
E obrigada pela sensibilidade.
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