Puxa o fecho pela ponta e divide-nos. Aprisiona-me do lado de lá do tecido. É macio, elástico mas resistente. Posso sentir-te o cheiro através dele. Consigo perceber-te o volume e quero abraçar-te. Mas o fecho está corrido mesmo até ao cimo da vida, até ao horizonte do pano que nos separa as vidas. E os horizontes, para o não deixarem de ser, estão sempre um pouco para lá do nosso alcance.
Não chego lá. Ao fecho. Puxaste-o com firmeza. E agora sou uma forma que distingues com o tacto e completas de memória com a lembrança da boca que se entreabre, húmida. Da língua que se te oferece, quente, adivinhando-te o desejo. Do beijo que se rouba e que podia estar gasto, de tão imaginado, de tão ansiado de tão infinitamente repetido no desejo e tão parcimoniosamente trocado. E agora não queria que o tivesses fechado.
Encravaste-o. Vês o pano agitar-se com o barulho do meu desespero? Quase se quebra a moldura dessa tela tão atroz, que me fere o orgulho e me enlouquece de impossibilidade. Um «quase» maldito, inteiro, que não cede e resiste e não se esvazia do significado. Que me deixa exausta, mãos já molhadas das lágrimas que não contenho e te querem também em soluços convulsivos, num choro sonoro, interminável.
Do lado de cá as mãos em sangue dilaceram o metal, lutam com a ironia escorregadia dos dentes que entrelaçados – juntos!!! – ajudam a manter-nos separados. E o sangue diluído de lágrimas tinge-me a sola dos pés e arrasta-me a alma. Mecânico, o desespero esquece-te. Concentra-me no meu medo, na minha incredulidade e faz de mim ruído, quase só barulho sem noite, sem dia, sem descanso na solidão. Grito e lamúria, raiva e pena: tudo o que sou.
Um dia a ira despediu-se. Logo pela manhã. Estava farta de mim. A pena deu-lhe a mão e poupou-se às despedidas. Vazia fiz-me silêncio e imobilidade. Deixei-me. E então percebi um movimento ligeiro, do lado de lá. Do teu lado. Senti que respiravas, suavemente. Que repetias um murmúrio incessantemente:
«Foi sem querer que encravei o fecho, quando me pediste para o correr até ao cimo. Foi sem querer…»
O tecido era inultrapassável, mas elástico e permitiu o abraço e o cheiro. Deixou beber-te as lágrimas e sentir o odor da tua pele. E falar. Horas infinitas sobre o lado de lá, o lado de cá e a impermanência da vida. Perto, mas não unidos.
Um dia – lembras-te? - assustados enquanto dormíamos, colados ao nosso limite, sentimos que algo caiu. Os dentes que nos separavam (fecho maldito) enferrujaram. E do pano dividido em dois fizemos um lençol. Para a cama que nunca mais deixámos de partilhar.
...porque as palavras tropeçam em sentimentos e se espalham, prontas a ser levadas pelos caminhos ao sabor das brisas...
30 maio 2011
14 maio 2011
A TUA PAZ
Tinhas um resto de lágrima mesmo por baixo do olhar.
Deixei-a ficar, apesar do movimento da mão direita. Queria afagar-te o rosto e limpar-te todas as lágrimas. Até as que ainda não choraste. Tolhi o gesto a tempo e deixei-me sem que me visses. A ver-te.
De costas, o teu cabelo esvoaçava porque estava vento e desenhava-te um rasto na brisa. Não te via a expressão, só os teus restos, o que deixavas para trás ao caminhar. Vamos deixando cair pedaços de nós quando andamos, para que alguém nos siga e encontre mais à frente no destino. Sabias?
Havia prédios à tua frente, sobrepostos, de janelas escancaradas, marquises fechadas e portas ameaçadoras que pareciam querer engolir-te. Pequena e frágil prosseguias e eu achei que era porque afinal eras forte. Mantinhas a passada e deixaste a urbe partida enquanto seguias inteira.
Entraste num automóvel. Fechaste a porta e a música ganhou-te. Tamborilavas no volante, corpo largado no assento, a cidade longe, lá atrás. O verde cresceu e cercou-te até limpar o Céu e te esgotar a estrada. A pé, por onde passaram outros pés, seguiste em frente sem saber bem porquê. Sentaste-te rente a uma ribeira contemplando-a, embalada pelo movimento incessante da água. O calor descalçou-te e sentiste a frescura do líquido cristalino. Como uma criança, chapinhaste a água com os pés.
Ficaste com uma gota de água no rosto, mesmo debaixo do olhar.
Parecia uma lágrima, que eu sabia que não era.
Deixei-a ficar. Na tua Paz.
Deixei-a ficar, apesar do movimento da mão direita. Queria afagar-te o rosto e limpar-te todas as lágrimas. Até as que ainda não choraste. Tolhi o gesto a tempo e deixei-me sem que me visses. A ver-te.
De costas, o teu cabelo esvoaçava porque estava vento e desenhava-te um rasto na brisa. Não te via a expressão, só os teus restos, o que deixavas para trás ao caminhar. Vamos deixando cair pedaços de nós quando andamos, para que alguém nos siga e encontre mais à frente no destino. Sabias?
Havia prédios à tua frente, sobrepostos, de janelas escancaradas, marquises fechadas e portas ameaçadoras que pareciam querer engolir-te. Pequena e frágil prosseguias e eu achei que era porque afinal eras forte. Mantinhas a passada e deixaste a urbe partida enquanto seguias inteira.
Entraste num automóvel. Fechaste a porta e a música ganhou-te. Tamborilavas no volante, corpo largado no assento, a cidade longe, lá atrás. O verde cresceu e cercou-te até limpar o Céu e te esgotar a estrada. A pé, por onde passaram outros pés, seguiste em frente sem saber bem porquê. Sentaste-te rente a uma ribeira contemplando-a, embalada pelo movimento incessante da água. O calor descalçou-te e sentiste a frescura do líquido cristalino. Como uma criança, chapinhaste a água com os pés.
Ficaste com uma gota de água no rosto, mesmo debaixo do olhar.
Parecia uma lágrima, que eu sabia que não era.
Deixei-a ficar. Na tua Paz.
08 maio 2011
LUZ
Gritos, sussurros, ofensas, pedras lançadas de lado nenhum e a luz… não fugia.
Descansava todas as noites, nunca breu, antes obscuridade onde mantinha um brilho diáfano, quase sumido.
De noite deixavam-na estar. Só até ao dia chegar e o brilho incomodar.
De noite, deixava-se estar quase bem, na vigília que lhe tolhia a profundidade do sono.
Manhã. Misturada com o Sol, passaria despercebida. Assim seria não fora o impacto que causava no sentir alheio. A luz do Sol até podia queimar. A sua… não devia existir.
Ainda assim não fugia. Brilhava firme, na sua missão de iluminar.
Sabia que um dia se apagaria. Mas só depois de ter iluminado tudo o que se lhe pedia.
Descansava todas as noites, nunca breu, antes obscuridade onde mantinha um brilho diáfano, quase sumido.
De noite deixavam-na estar. Só até ao dia chegar e o brilho incomodar.
De noite, deixava-se estar quase bem, na vigília que lhe tolhia a profundidade do sono.
Manhã. Misturada com o Sol, passaria despercebida. Assim seria não fora o impacto que causava no sentir alheio. A luz do Sol até podia queimar. A sua… não devia existir.
Ainda assim não fugia. Brilhava firme, na sua missão de iluminar.
Sabia que um dia se apagaria. Mas só depois de ter iluminado tudo o que se lhe pedia.
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