31 março 2010

ENRODILHADA DE NADA




Estico-me. Espreguiço-me das pregas,
Que me tenho enrodilhada de ar e luz…
Ergo-me, de triunfos não meus, das regras.
Lanço-me à interrogação que me seduz
Em tragos, em ventos, em luares compridos
Em olhos fechados, nas mãos todas dadas
Em sussurros d’alma, de beijos pedidos,
Na sombra das sombras de céus estrelados.
As marcas, os vincos, o relevo indelével
Moldado na vida, escancarado no ser
Escrito sem palavras na folha de papel
Leito de sorriso, não te quero perder.
Ampla de ansiedade, encontro-te, Paz.
Lisa de recantos, sou gigante, assim:
Nos intervalos da noite – amiga que traz
A força, o enleio para ficar em mim!

(…)



31-03-2010



30 março 2010

QUERER DE PODER



Um SORRISO – o que contém?

Uma centelha de LUZ irradia

Menos que MEDO– e porém…

Carrega mais do que devia?

Um só BEIJO – será que tem-

Mistério, PAZ, inquietude?

Lábios nos lábios de alguém

Boca para além da VONTADE.

Um ABRAÇO – todo ele oferta –

O que enlaça, sem DEVER?

Fica-te a PORTA entreaberta.

Fica um QUERER… de poder.



30 MARÇO 2010

29 março 2010

LAMENTO




Lamento.

O tanto de mim, solto por aí…

Cada rosto que não fixei,

Cada fôlego que não esgotei

Cada olhar que não busquei.

O tempo.

Que me espalha ao acaso

Que me solta leve nas brisas

Que me lança longe, a prazo

Que me chama com carícias…

Que perco.

De mim buscando-me em ti,

Outro que és, e sempre mais

Até que vejo – que me perdi? –

Entre momentos, como os demais.

Pensando.

Nas dores – em sonhos – amores

No fôlego incansável da vida

Que enfeito com música, e flores…

Mesmo depois de a ver perdida.

Sonho-o.

Cheio, inteiro. Perfeito

Rotinas caídas - esquecidas

Horário de pó, desfeito.

Amarras desfeitas. Perdidas.

Sentido.

NÃO


Não me quero ónus.
Quero-me depositária.
DE TI
Dos sorrisos velados
Dos abraços apertados
TEUS
Da mais secreta alegria,
Dos beijos imaginados
MEUS
Das palavras que são poesia
Dos momentos intuídos.
EM MIM
Não me quero… sem ti.
POR AÍ.

27 março 2010

VENTO




Estende a tua mão, e sopra-me beijos.

Como uma criança. Vá! Manda-mos…

Peito pleno de amor, olhos cerrados…

E os beijos? Sim, quero-os! Sopra-mos.

Esquece geografia, ignora distâncias:

Desenha-os na tua alma, fá-los carícias

Que quero comigo – já estou em ânsias

Dos beijos que te peço e que não envias.

É teu o instante – será o sentimento? -

Um beijo enviado , inchado de alento,

Distância esquecida – que vença o intento –

Manda-me um só beijo soprado no vento!

(...) 27 Março 2010


24 março 2010

(Uni)verso de Mentira


Oculto, eis-te aí: todo amplo, tão pequeno…
Sombra iluminada, gritas silêncio. Reclamas-me.
Falas-me só no reverso das palavras. Sereno.
De olhos perdidos na busca, encontras-me:
Na orla marcada de uma maré que nunca vem
Na música tilintante de lágrimas de cristal
Pérolas de alma quebrando-se - aqui e além -
Contra invisíveis montanhas. Não faz mal…
Paralelo no plano, eclipsas-te na realidade
Renasces quando me alheio e me sinto fugir.
Universo de mentira, fazes-me verdade
Quando paro de pensar e me deixo sentir!


20 março 2010

DOR DE DAR A FELICIDADE



Dezassete anos, um filho nos braços, mala na rua, muito medo e pouca esperança por bagagem. Olhos negros, rosto de menina em corpo precocemente torneado, cobiça do patrão. Gravidez jamais sonhada, início de pesadelo: ''Criadas com filhos são uma carga de trabalhos, por isso, rua!''.

Nem pai, nem mãe, ninguém. Só uma prima afastada e viúva, com filho solteirão. Comida e roupa lavada em troca de uma escrava para todo o serviço, incluindo a diversão do mocetão. Existisse inferno no mundo e seria aquele: explorada, usada, violada no corpo e na alma. Sofrimento imenso, suportado pensando no filho, fruto dos apetites patronais, mas nem por isso menos amado. Dor, contudo, raramente traduzida em lágrimas. Algo lhe dizia que as deveria guardar para mais tarde.

A prima faleceu, deixando pouco mais que dívidas e o filho inútil por herança. Inútil, mas competente para a embuchar de novo. Amostra de gente, mas forte o suficiente para a espancar e exigir o aborto. Não! Assassina, jamais! Porrada, fome, medo, suportaria tudo, mas não abortaria.

Nasceu pequena, fraca, mas linda, dona de imensos olhos negros. Inocente, vê a pureza punida: ferozmente indesejada pelo rapagão, escapou por um triz à queda do terceiro andar, salvou-se ''in extremis'' do abandono junto ao caixote do lixo, sobreviveu à fome ditada pela gulodice do pai que, às escondidas, lhe bebia os biberões, enquanto a mãe lavava escadas para sustentar a casa.

O medo constante da pancada é suplantado pelo pânico, pelo pavor da morte da filha, provocada pelo monstro alcoolizado. Recomendações, imensas ao irmãozinho, para olhar pela bébé, para correr a avisá-la caso o pai saísse de casa com ela. Uma ansiedade constante, que a massacrava dia e noite, onde quer que estivesse. Gritos, discussões, pedidos, rogos, de nada serviam. Terminavam em hematomas por todo o corpo, dificuldade acrescida para trabalhar, medo crescente do ódio escrito no olhar ébrio, ódio que alastrava a ambas as crianças. A menina definhava, pouco a pouco, não obstante o esforço da mãe. Não crescia, chorava constantemente, estava magra.

Naquele dia, a mancha negra bem visível sobre o rosto não lhe permitiu fugir à confissão, perante a curiosidade natural e a preocupação sincera da vizinha. Surgiu a proposta e as lágrimas guardadas, acumuladas, encharcaram o sim altruísta. Aí, sim, chorou, àgua e sal que, na fuga, arrastavam a maior parte da sua alma. Vitória dorida, que abriu chagas, essa do amor sobre o egoísmo. Vitória com taça de dor, troféu festejado com tristeza infinita.

Acabou por fugir para a terra natal, no recôndito interior alentejano, aproveitando um coma alcoólico do primo afastado. Casou, teve mais filhos, de novo companheiros de drama: bebedeiras e tareia, pancada e embriaguez. Tudo como antes? Não. Algo mudou na sua vida, para sempre. A marca não se apaga, muito embora mantenha contacto com a sua princesinha. Sim, uma princesa feliz, alegre, inteligente, linda. Mandam-lhe fotos dela, roupas e brinquedos que já não usa para os outros pequeninos.

Sofreu muito. Dor maior do que a morte, a de dar um filho. Mesmo sabendo ser a melhor solução. Mesmo consciente de que a menina vive feliz, longe da sua miséria. Todos os anos falava com ela. Telefonava-lhe no dia dos seus anos. A menina sabia de tudo, acharam melhor que soubesse. Ao telefone, embora fria, permitia que lhe chamasse filha. ''Sabes quem fala? É a tua mãe. Parabéns, filha!''. Ah! Momento sublime, aquele em que falava com ela e lhe chamava filha, em que a menina respondia com um obrigado tímido.

14 anos e o fim: aniversário e telefonema. Felicidade efémera, ansiada durante o ano inteiro. Dor quase imposível, de mil mortes, na fuga à resposta habitual. O agradecimento costumeiro substituído por frase mortífera, espada que trespassou todas as suas convicções, certezas e intenções: ''Mãe? Ah, já percebi. Quer falar com a minha mãe. Um minuto, vou chamar!''.

Dor de mil abandonos condensada num instante, instante de porta que se fecha definitivamente. De porta trancada conscientemente, deliberadamente, com mensagem escrita: ''deixa-me em paz!''

Nunca mais telefonou. Os telefonemas? Egoísmo puro, opondo-se ao amor desinteressado que mostrara quando tomou a ''decisão'', encharcada em lágrimas nunca mais vertidas. Para não sofrer, para sofrer menos, fazia sofrer. O seu momento de felicidade anual transformava-se num anual mau-estar da sua princesa. Dali para a frente a sua menina teria apenas uma mãe. E não seria ela.

Nova decisão difícil. Dor? Imensa. Igual ou maior que a sentida no momento em que colocou a sua pequenina -  com apenas dois meses - nos braços de alguém que a chamaria de filha, que a veria crescer, que a faria feliz. Agora era a princesinha que lhe mostrava que ela já não era sua mãe, que tinha outra. Que só queria ter uma.

A ideia de nunca mais saber nada dela, de jamais voltar a ver uma foto,vvoltar a ouvir a sua voz, quase a enlouquece. Mas decretou o fim do egoísmo, aceitou a ignorância total, o corte que a menina pediu.

É difícil, muito. Há anos que nada procura saber. Nunca mais escreveu, não mais telefonou, matou-se para a menina, enroscou-se numa dor que a espreita no olhar dos seus filhos, que fala com ela no riso das crianças, que dorme junto a si na ausência etílica do marido pela noite fora. Essa dor omnipresente segue-a como uma sombra interior, que não se reflecte, mas existe. Dor suportada não pacífica, mas resignadamente, porque é dor de dar a felicidade a quem ainda pode ser feliz.
A única maneira ao seu alcance para mostrar à sua princesinha o quanto a ama. Tanto! Tanto!...

18 março 2010

In(DI)stinto

O som estridente e monótono da chaleira esgueirava-se pela fresta da porta fechada. Tocou a campaínha. Não abriram. estranhou. Esperou. Voltou a tocar. Uma. Duas. Três vezes mais. Ela não se pode ter esquecido do recado que deixara à secretária: «Em tua casa, às seis da tarde». Uma dor de cabeça, decerto. E o inevitável comprimido, claro! Impaciente, insistiu na tortura do botão da campaínha. Que demora!

O instinto -que é instinto porque não se controla- emergiu no pontapé violento na porta. Que se abriu...

O insistente ruído era agora mais forte, como se, pela persistência, procurasse dar o alarme. Alarme! Que parvoíce! Filmes policiais a mais, claro está... Mas o arrepio?!... Parvoíces! Mariquices, diria a sua mãe já falecida. Mariquices...

Os passos, tornados hesitantes pelo arrepio -parvoíce, mas instintivo, incontrolável- escondem o seu ruído, enroscam-no no grito já irritante da maldita chaleira. A chaleira! Claro! É preciso apagar o lume. Mas os passos -ou o arrepio- guiam-no para a sala.

Da sala ouve-se aquele lamuriar desconsolado, inconsolável da chaleira. Chamou em voz alta: «Maria! Maria!!! Maria...». Não, também não estava no quarto. A cama estava feita. Havia flores sobre a cómoda. E também no chão, junto do amontoado de almofadas em que gostavam de tomar vinho branco, champanhe, trocar abraços e...

Saíu. Decerto para comprar o último detalhe: o vinho, bombons (aqueles deliciosos, com recheio sortido de menta e licor...), quem sabe caviar? Todas as extravagâncias eram permitidas -e possíveis. Então estava tudo bem, óbvio! Bastava esperar. E, já agora, apagar a chaleira que cada vez mais, berra, grita, chora e soluça inexplicavelmente.

Tocaram à campainha. Era ela! Correu para a porta. Tonta! Saíu, deixou a porta mal fechada e ainda por cima esqueceu-se da chave! Sorte a sua ele ter chegado antes dela. E ter dado com a porta encostada... O rosto perfeito, nariz fino, olhos verdes, lábios generosos, vermelhos, transfigurado em rugas, pés-de-galinha e uma verruga no queixo?!!! Afinal era só a porteira...

«Aqui tem o tal vinho francês que a Senhora D. Maria me pediu para ir comprar. E aquela coisa esquisita... ca... carv... olhe, é qualquer coisa parecida com carviar, ou casviar, ou... sei lá! Olhe lá, porque é que não apaga o lume? Há quase uma hora que estou a ouvir o raio da chaleira! E a D. Maria? Onde está?».

Estranho... Afinal ela não saíu. A chaleira, há uma hora?!!! Olhou em redor e já a porteira se esgueirara para a cozinha. Fez menção de a seguir, mas o grito paralizou-o.

O choro da chaleira calou-se. Substituíram-no o da porteira e o seu desespero. No chão gelado, ela estava ainda mais gelada. Inerte. Fria. Ela... ela estava fria!!! Era por ela que a chaleira carpia, chorava, desesperava.. Era por ela o arrepio!... Pela faca que soltara o sangue dos pulsos.

Porquê?! Estava tudo tão perfeito! Era tudo tão... perfeito! Porquê? E o caviar? As flores no quarto, junto das almofadas onde gostavam de... O vinho francês?

Medo, fuga ou simplesmente instinto -instinto que é instinto porque não se controla?

15 março 2010

PORTAS


- Não tenho!

- Tens pois!

- Não tenho, já te disse!

- Mas então… Como se entra?

Entras… de espírito aberto, sem fios ou cordas que o amarrem. Não quero nada que me enrede ou com que possa enredar.

Entras com sonhos nas mãos, velhos ou novos, ofertas eternas, sempre prontos a partilhar.

Entras de guardas descidas, porque num mundo perfeito não nos deixariam errar.

Entras de defeitos ao peito e não ocultos nas tuas sombras: ocupam demasiado espaço e não te vou julgar.

- Tens, vês que tens?

- Não tenho!

- Tens uma porta, para se entrar, uma combinação de cofre para acertar…

-Não… Não tenho porta, não há janelas, nem fechaduras para trancar.

Não percebeste ainda?

Já estás cá dentro. Deixa-te ficar.

13 março 2010

ADOPTA-ME

Adopta-me. Faz-me tua.
Abre o meu livro e escreve.
Na primeira página.
Com tinta permanente.
Não, a lápis não. (Mais não…)
E na primeira página.
Está borrada, apagada.
Amachucada. E rasgada.
Mas só nas pontas.
Branco sujo, sempre vazia.
Escreve-me no livro.
A teu bel-prazer.
Cria-me. Desde sempre.
Cria-me. Para sempre.
Escolhe-me um nome.
E acrescenta-lhe o teu.
Com rodapés, não te esqueças!
Aí quero memórias. Escritas.
Podes inventá-las.
No fim dos capítulos
-Sabes desenhar? –
Fotografias. Minhas.
Que não tiraste. Que importa?
Primeiro banho, primeiro som…
O sorriso e os aniversários…
Põe-nas lá. Desenhadas.
Ensina-me a ler. E a ver.
Daqui a algum tempo
-Quando souber ler –
Vou-nos aprender.
Vou-me conhecer.
Ver as fotos de imaginação
Com olhos de recordação.
Virá um tempo - um dia -
De liberdade da memória,
Partilha-me. Tesouro.
Estarei nas listas de Natal.
Nas agendas o meu aniversário.
Coloca um prato mais na mesa
Para a noite da Consoada.
Faz-me família:
Cola o teu sangue ao meu.
No tempo sem memória – ele virá!
Dona de mim, plena de ti
A folha em branco estará lá:
Letra bonita, tinta indelével.
Primeiro passo da caminhada.
Adopta-me. Por onde andas?
Porque demoras?...

 

 

 

 

 

 

 

10 março 2010

FILHA

Abres o sorriso, foge-te a luz
Em serpentinas irrequietas
Clareia as noites, brilha, seduz
Com reviravoltas e piruetas.

Abres os olhos, fazes magia
Acrescentas mundos ao céu
Todos pintados de alegria
Com o pincel do olhar teu!

Estendes a mão, é pequenina.
E nela cabe – que maravilha -
Todo o amor de uma menina,
Todo o amor de uma filha….

Para ti minha filha, o meu Mundo de Luz!


08 março 2010

CINZAS

Eras tu, o brilho
Nos olhos em chamas
Nas luzes inclusas
Na rua, no trilho
Nas múltiplas camas
Nas ruas escusas.
Eras tu, a chama
Incêndio de corpo
Pele em labaredas
Grito que chama
Fogo que transporto
Só brasa, sem cinzas.
Essas voam com o vento…

CEREJAS

Na tua boca

(de cerejas)

Sopro-te brisa

(vermelhas)

De desejo

(brilhantes)

Quero-a minha

(sumarentas)

Quero-a toda

(doces, doces)

Num só beijo!

03 março 2010

Às Vezes hoje.

Hoje. Todos os Hojes…
Beijo-te as mãos,
Encho-as de amor
Para devolver.
Atiro-te o olhar
Até ao fundo.
Deixo-te âncora,
Para me fixar.
Cubro com o meu
O teu corpo nu.
Para te sentir,
Para te guardar.
Salpico-te de beijos
Toques sem fim.
Faço-te em mapa
Para te encontrar.
Às Vezes, só às Vezes…
Descubro-te caminho
No mapa dos beijos
Reconheço o corpo
Que te guardei,
Busco a âncora
- Sim, nesse olhar –
E reclamo-te então
Simples no gesto de amar.
De mãos plenas,
A transbordar,
Devolves-me em penhor
O que te quis deixar.
Fica a promessa,
Às Vezes Hoje,
De te encher as mãos
De amor emprestado,
Que vou reclamar –
Não te foi oferecido.
Que vais devolver:
Não o queres roubado!

02 março 2010

O LAMEIRO DO CHÃO VERDE

«Mas...afinal em que é que ficamos?!», rosnou o Chico Pinguinha, marido da Clotilde. O burburinho alastrou e contagiou a janela, que bateu furiosamente. «Fechem essa merda! Ainda se partem os vidros!», vociferou uma voz estridente entalada num qualquer canto da sala.

Os rostos apinhados trocavam olhares e hálitos de pinga e de alho, misturavam-se cheiros de terra e de gado. A janela fechada impedia agora a ventilação da sala principal da Casa do Povo -um quartinho quase minúsculo, suficiente para a população escassa- e o cheiro de suor apoderou-se do espaço, fazendo esquecer todos os outros.

«É preciso tomar uma decisão, arre, bolas! Calai-vos e puxai pela cabeça!». O Chico Pinguinha mudava de coloração gradualmente, o que era perigoso quando a mudança tinha causas que não o vinho ou o bagaço... «Afinal, somos homens ou bichos? Arre, maricas! Mais parecem cordeiros ou bodes chifrudos!». A fogueira da ira, espicaçada pelo verbo rude e irritado do Pinguinha, crescia em labaredas vivas e intensas.

«O Lameiro do Chão Verde é do Armindo!», soou uma voz quase histérica e fina de mulher, «É dele e de mais ninguém!», apoiou um rugido rouco de cabelos brancos.

«Mas vamos entrar em guerra, carago! Já pensasteis nisso?», protesto tímido do Cipriano -primo da sobrinha do Anacleto que é filho do Adérito, Presidente da Junta de Pedras Negras- homem abastado e possuídor de dez lameiros e para mais, pretendente da Zefa da Anunciação, nem mais nem menos que afilhada do Adérito...

«Pois venha a guerra, que se lixe, carago! O lameiro é do Armindo, se é dele é nosso, é da aldeia! Conosco não se brinca! E eu levanto a minha enxada contra o raio do Anacleto! Que vá roubar lameiros aos de Pedras Negras, mas que deixe os nossos em paz, Jasus ma valha! Que não se metam conosco, raios! Senão...». O Chico Pinguinha, ilustre Presidente da Junta de Freguesia de Águas Belas, defendia a sua dama e deixava-se dominar pela ira que o enrubescia cada vez mais.

«Nas nossas casas, nas nossas terras e nas nossas mulheres, há-de vir o primeiro que lhes toque e verá!». O Jaquim Vistas-curtas não percebeu o motivo da gargalhada geral que seguiu a sua intervenção, menos ainda o súbito vermelhão das faces da Marcelina, esposa do ingénuo cornudo.

«Apoiado!», ergueu-se a voz do Pinguinha. E deixou entrar a ventania. Os outros seguiram-no porta-fora, bordões e enxadas debaixo do braço, contagiados pela ira não alcoolizada do Presidente. Era a guerra contra Pedras Negras, aldeia vizinha, de gente desleal e invejosa.

Na missa de domingo, o Padre Hipólito lamentou os feridos e prometeu benzer o Lameiro do Chão Verde, fértil de erva todo o ano, mas acima de tudo, novamente propriedade do Armindo e de todo o povo de Águas Belas.

Hoje, o Lameiro do Chão Verde está abandonado. Não são ervas, mas silvas que lá crescem. Ovelhas quase não existem e há pasto de sobra para as vacas que resistem aos subsídios das Comunidades Europeias. Já não se levantam enxadas e bordões em defesa de um palmo de chão nessa terra com que costumo trair a cidade em que nasci. É lá que gosto de me esconder nas férias, fugir da civilização, encontrar-me com a liberdade. Estão a morrer, os velhos que restam; as casas de granito asfixiam entre os «mamarrachos» germano-afrancesados dos emigrantes. Mas o que resta ainda é puro, genuíno. Enquanto ainda existirem os laços ténues que prendem aquela aldeia ao passado, posso identificar em cada recanto, em cada janela, em cada caminho e vereda, as histórias enfeitadas de História que o meu avô, ancião de cento e três anos, tem a paciência e a alegria imensa de me contar junto à lareira de uma casa de granito. Histórias do passado trazidas à força para o futuro num fio frágil de palavras encadeadas. Histórias importantes -importantíssimas- como a célebre guerra com Pedras Negras pelo Lameiro do Chão Verde, marco histórico da aldeia de Águas Belas, que é como quem diz, da terra que adoptei como minha. É que Lisboa é de muita gente. E aquele cantinho é quase só meu...

ESTAREMOS DE VOLTA, À UMA, PARA AS NOTÍCIAS.

(do fundo do baú: texto publicado - 2º prémio de texto - no extinto e saudoso DN Jovem)

São incríveis as peripécias que têm lugar numa rádio, principalmente numa pequena rádio local. Falo com conhecimento de causa: com 16 anos fui a escolhida do meu liceu para frequentar um estágio numa rádio local da Amadora. Escolheram o melhor aluno de cada liceu. E lá estava eu, numa rádio, sem sequer imaginar as coisas incríveis que poderiam acontecer. Mas aconteceram. Sim, aprendi muito, com experiências, cuja intensidade variou desde o hilariante ao petrificante.

O método de ensino para os estagiários consistia na técnica do terror, ou seja, colocavam-nos perante as situações e nós que nos desenrascássemos. Um pouco drástico, este método, mas eficaz. Eu não consegui escapar às várias ratoeiras do percurso. O estágio começou na redacção e, acreditem, ali se passam muitas coisas arrepiantes. Ultrapassada a fase inicial, seguiu-se um período de acalmia, de habituação aos imprevistos.

Quando eu pensava que tinha passado já por todos os sustos possíveis, novo tratamento de choque: os directos do exterior! Para os imprevistos do interior, estava eu vacinada, mas para reportagem na rua... A prova foi o baptismo. Nunca tinha feito reportagem na vida. Até que me deram um gravador, uma fotocópia do telex que noticiava o evento e me mandaram, sózinha, para o Palácio de Belém, cobrir o encontro do Mário Soares com um ''big boss'' alemão, no âmbito de uma grande cimeira internacional. Era uma grande responsabilidade, que só me foi incumbida, porque os (poucos) jornalistas mais experientes iriam cobrir outros encontros, de maior importância ainda, num hotel lisboeta. Recomendações: tentar pôr o gravador em frente das câmaras de TV (publicidade, a quanto obrigas!) e, assim que obtivesse a declaração que considerasse mais importante, seleccioná-la, correr para a sala de imprensa e, pelo telefone, enviá-la para a rádio. Parecia simples. E foi, sem contar com uns ''probleminhas''. Primeiro, troquei a sala de imprensa pelo posto da polícia. Nada grave. Chegada à sala de imprensa, deparei com um autêntico bando de jornalistas, muito bem enturmados, bebendo café, conversando descontraídamente. Eu tentei descobrir um cantinho onde me esconder e tentei passar despercebida, mexendo no gravador, verificando o material. Mas tanta inexperiência não poderia passar sem ser notada. E um jovem repórter de um jornal conhecido meteu conversa. Eu fazia-lhe recordar a primeira vez que o lançaram às feras. Sentiu-se desorientado, percebia como eu me estava a sentir. Simpático, disse-me para o seguir. Para onde ele fosse, eu ia também. Quando visse um grande molho em volta de um homem, devia meter o gravador lá para o meio e pronto, nada mais fácil! Senti-me mais tranquila. E fomos conversando.

O pior foram os falsos alarmes. Estávamos à espera no jardim do palácio e, volta e meia, desatavam todos a correr para o corredor. Lá ia eu atrás do Miguel, para concluirmos que fora um empregado que entrara, um polícia, enfim, qualquer um menos o tão esperado político alemão. Até que vi o Miguel sair de mansinho. Segui-o, também de mansinho, pensando que ele sabia de algo que o molho luso-estrangeiro ainda não tinha notado. Um furo a meias, pensei. Mas pensei mal, porque ele entrou por uma porta e quando viu que eu ia entrar também, disse:

-Aqui, é melhor não. A casa-de-banho das senhoras é no outro corredor.

Parece que, afinal, tinha que passar sem o furo! E arranjar coragem para olhar de novo para o Miguel sem corar. Que gaffe!

O ''Mister importante'' chegou finalmente. Sinceramente, não lhe vi o rosto, sequer. O meu metro e sessenta não permitiu. Perdi o Miguel de vista, mas meti o gravador para o molho. E senti alguém ajeitar-me a mão, deliberadamente. Não foi um toque casual. Quando o primeiro jornalista se dirigiu à sala de imprensa, calculei que o mais importante já tivesse sido dito. Fui também, rebobinei, escolhi a última frase e liguei para a rádio. Parece mentira, mas a verdade é que, já com o editor em linha e tudo pronto do lado de lá para gravar, o gravador não dava nada! Estava fanhoso, mal se percebia o que diziam. Saí de lá a correr, sem me despedir sequer do Miguel. Tinha que chegar à rádio o mais depressa possível. Como se tudo o que já acontecera antes não fosse suficiente, perdi a camioneta e tive que esperar 40 minutos. E o gravador sem dar nada! Não funcionava, pura e simplesmente!

Cheguei à Amadora, mais furiosa que qualquer outra coisa. Quase subi às paredes quando descobri que o problema com o gravador eram as pilhas: sim, deviam tê-las recarregado, mas por qualquer motivo não foram recarregadas.

Felizmente, com novas pilhas, a gravação era perceptível, o registo foi para o ar, embora tardiamente. Felicitaram-me pelo trabalho. E é claro que eu não lhes contei os pequenos precalços.

No dia seguinte cheguei à rádio e voltei a ouvir elogios. Fora de tempo, pensei. Mas se tivesse visto TV no dia anterior tinha descoberto o motivo: na reportagem da televisão o gravador da rádio estava em destaque, em primeiro plano. ''A míuda tem jeito'', diziam, enquanto eu agradecia a quem quer que tenha sido que me deu o jeitinho no gravador.


PS: pode parecer que o anterior é ficção. Na verdade é apenas um retrato verídico daquilo que se passa numa pequena rádio local, com falta de meios e de pessoal. Tudo se passa um pouco ao acaso, numa espécie de caos organizado. Mas como ''escola'' funciona. Ao medo segue-se optimismo e auto-confiança. Mesmo que quando pensamos nas coisas que aconteceram, sejamos levados a pensar se terá sido mesmo verdade...

01 março 2010

Não Sei

Não sei.
Se foi o Sol ou a Lua, se foi um Século ou um Dia.
Foi.
A meio de Ti ou de Mim, a meio de um Nós que havia?
Procurei.
Busquei-te fora de Mim, entre Mim e o Mundo, perdi-me nas Teias e nas Entrelinhas.
Insisti.
Bati à Porta que sabia, que nunca – jamais! – se abria. Ficaram ecos da Campainha.
Resisti.
Ao Horizonte pleno de Nadas, ondulado em Dunas amareladas, estéril sobre Passadas cansadas. As minhas.
Esperei.
Pelo Sinal que tardava, pela Chegada nunca anunciada. Pela Resposta nunca aventada.
Desisti.
O Tempo Não pára, mas aninha. Não retrocede, mas Remenda. Não Apaga, mas disfarça: Adeus.
Olá.
- Por onde andaste?
- Não Sei.
- Olá. Se te Queres aqui, deixa-te Estar.