Ontem decidi caminhar na alvorada.
Estou cansada da estrada por onde me levam os sinais. Não gosto do SENTIDO PROIBIDO. E abomino o SENTIDO OBRIGATÓRIO. Que se sente o que se quer! Que se sente o que se pode… E quando se pode sentir os nossos passos ficam cegos. Desobedecem ao STOP e desafiam cruzamentos. Deixam-se andar desatentos, alheios às distâncias dos estacionamentos.
Passo os dias entre a estrada e os passeios. Contando os paralelepípedos ou encandeada pelo brilho do alcatrão a estorricar ao sol.
Algumas calçadas são irregulares, ferem-me os pés – egoístas- que tratam de dividir a dor com a alma. E fica molhado o meu rastro nos caminhos. Se quiseres, podes segui-lo, enquanto não me evaporo do percurso…
O alcatrão fere-me o olhar com o cheiro negro e viscoso que traz no brilho que oferece, peganhoso…. Tímido, não conta nada, o olhar. Guarda a luz encandeada e as dores que lhe desperta em cápsulas por detrás do pensamento. Só dou com elas nos dias em que me levanto num pranto e preciso de me livrar de sofrimento.
Às vezes passo por pedra polida. Bem cortada à medida. Lisa no brilho uniforme. E do conforto do andar acabo sempre a pensar na fonte da sua beleza. Quantos cortes suportou, mais a tortura de alisar, para se fazer igual, só mais uma entre tantas que deixamos para trás na pressa de algum lugar. Não quero assim a minha vida.
Acordo quando tropeço. Num desnível de pedra solta. Um susto que agradeço porque me tende a alma a adormecer no percurso. A rocha que me acorda é baça e irregular. Não fosse o meu tropeçar, não me roubaria um olhar. Mas ganhou-me a curiosidade a malandra desnivelada que quase me fazia tombar. Sentei-me, sem pressa, para a apreciar. E mandei o tempo avançar.
Ontem decidi caminhar na alvorada. Ou começar ao contrário, partindo da chegada. Ou inverter a cadência e acelerar em dormência. Ou deixar-me ficar sem ir quando me mandam seguir, a ver a pedra que ousa deixar-se sem aparência, largada em irreverência, quando entro, sem consciência numa rua mal iluminada, que tinha mesmo à entrada um sinal que me avisava de um BECO SEM SAÍDA.
Mas andava na alvorada, no alcatrão sem estrada e nas pedras todas soltas. Decretei um fim aos sinais e às demais convenções, larguei-me a correr sempre em frente, como quem aprende de repente e descobre que afinal sente e… para sair daquele beco… inventei um novo mapa, onde cada rua é só um espaço para desenhar outro caminho à medida de cada passo. E sem sinais da vida.