30 julho 2010

INGENUIDADE


Puxo a pele, puxo os cabelos, puxo a raiva

Que está elástica e gigante e me envolve

Que me queima, que me rasga e revolve

Que nada limpa, nada emenda nem resolve

Puxo as lágrimas que se esticam para ser rio

Ou se espaçam para ser gotas de suor… frio

Puxo-me em vómito de revolta, de desvario

Puxo a raiva, puxo a pele, puxo os cabelos

Que flutuam à superfície da água do poço

Que me afogo e já quase não me ouço

Estranho murmúrio, resto de grito, mortiço

Largado o sonho à mercê da realidade

Que se negou crua, que se quis verdade

Com injustiça se vela, morto, na eternidade

Puxo os cabelos, puxo a raiva, puxo a pele

Mortalha enrugada da falecida ingenuidade….

25 julho 2010

ALVORADA


Ontem decidi caminhar na alvorada.

Estou cansada da estrada por onde me levam os sinais. Não gosto do SENTIDO PROIBIDO. E abomino o SENTIDO OBRIGATÓRIO. Que se sente o que se quer! Que se sente o que se pode… E quando se pode sentir os nossos passos ficam cegos. Desobedecem ao STOP e desafiam cruzamentos. Deixam-se andar desatentos, alheios às distâncias dos estacionamentos.

Passo os dias entre a estrada e os passeios. Contando os paralelepípedos ou encandeada pelo brilho do alcatrão a estorricar ao sol.

Algumas calçadas são irregulares, ferem-me os pés – egoístas- que tratam de dividir a dor com a alma. E fica molhado o meu rastro nos caminhos. Se quiseres, podes segui-lo, enquanto não me evaporo do percurso…

O alcatrão fere-me o olhar com o cheiro negro e viscoso que traz no brilho que oferece, peganhoso…. Tímido, não conta nada, o olhar. Guarda a luz encandeada e as dores que lhe desperta em cápsulas por detrás do pensamento. Só dou com elas nos dias em que me levanto num pranto e preciso de me livrar de sofrimento.

Às vezes passo por pedra polida. Bem cortada à medida. Lisa no brilho uniforme. E do conforto do andar acabo sempre a pensar na fonte da sua beleza. Quantos cortes suportou, mais a tortura de alisar, para se fazer igual, só mais uma entre tantas que deixamos para trás na pressa de algum lugar. Não quero assim a minha vida.

Acordo quando tropeço. Num desnível de pedra solta. Um susto que agradeço porque me tende a alma a adormecer no percurso. A rocha que me acorda é baça e irregular. Não fosse o meu tropeçar, não me roubaria um olhar. Mas ganhou-me a curiosidade a malandra desnivelada que quase me fazia tombar. Sentei-me, sem pressa, para a apreciar. E mandei o tempo avançar.

Ontem decidi caminhar na alvorada. Ou começar ao contrário, partindo da chegada. Ou inverter a cadência e acelerar em dormência. Ou deixar-me ficar sem ir quando me mandam seguir, a ver a pedra que ousa deixar-se sem aparência, largada em irreverência, quando entro, sem consciência numa rua mal iluminada, que tinha mesmo à entrada um sinal que me avisava de um BECO SEM SAÍDA.

Mas andava na alvorada, no alcatrão sem estrada e nas pedras todas soltas. Decretei um fim aos sinais e às demais convenções, larguei-me a correr sempre em frente, como quem aprende de repente e descobre que afinal sente e… para sair daquele beco… inventei um novo mapa, onde cada rua é só um espaço para desenhar outro caminho à medida de cada passo. E sem sinais da vida.

22 julho 2010

CALMA


Sei que a pele não se troca

Que a carne não se funde

E quando a boca se toca

No beijo molhado, ardente

Anuncia-se um adeus

Do teu corpo encharcado

Ainda nos braços meus

Ao meu, jamais saciado.

No instinto da saudade

Faço colo do desejo

E consolo da verdade

Esperando mais um beijo…

E na certeza que só tem

Quem sente fundida a alma

No mais profundo de alguém,

Digo-te: anda! Com calma…


20 julho 2010

ABISMO


no abismo, lá ao fundo,

bem para além do fim da luz

guardo-me escondida do mundo

neste breu que me seduz

e me deixa livre e nua

nas sombras que pintam a rua...

19 julho 2010

PERDÃO

Abriste os olhos num perdão negro. Apeteceu-me mergulhar-te e encharcar-me do alcatrão líquido, breu viscoso e lamacento. Deixar-me afundar no pântano do teu olhar, com a consciência a absorver-me. Sem deixar as mãos procurar salvação. Sem que o grito se fizesse socorro, sem que o medo se fizesse instinto e sobrevivência.


Tantas as mágoas, não me consegui afogar. Encontrei fundo firme, teimoso. Insistiu em repudiar-me. Escorri-te dos olhos em lágrimas cristalinas, escondida na superfície transparente. Apenas reflexo do céu que estava azul e das nuvens que não queriam ser cinzentas nesse dia.


Deixei-me sentada, as pernas cruzadas, decidida a esperar. Esperei até perceber que tinha que descobrir o que havia de esperar. Se um perdão lamacento e sem espaço para mim ou o reflexo do sol nas nuvens que se deixam flutuar. Fechei os olhos, permiti-me descansar. De ti, de mim, das pernas que – cruzadas – me pediam para andar.


Vi uma estrada no chão com um traço incerto. Pus-me a seguir os riscos num caminho em aberto. Ficaram juntos, aos poucos, contínuos na estrada. Foi-me mais fácil segui-los, acelerei a passada. E deixei-me à deriva naquela linha traçada.


Fechei os olhos num arrependimento sem cor. Pulsava-me no corpo uma angústia, latejava-me uma dor, uma fúria de desencanto que não encontrava buraco onde se pudesse esconder. Acho que queria esquecer que talvez quisesse morrer. Fazia por estar, sem chegar a ser.


Arrumei o cansaço na mochila e segui. A linha branca acabara, mas o rumo era firme: tinha como destino a estação desactivada da alma cheia de nada. E na ideia, depois da partida, nada trazia, só a chegada.


Pés rasgados do traço e gastos no cansaço. Corpo vergado dos dias percorrendo o espaço entre a lembrança de ti e o meu embaraço. Boca sedenta da água que não bebia, rosto entregue à expressão triste da agonia. Que trazia, e sentia e às vezes não sabia… Abri os olhos num perdão desejado. Procurei os teus – estavam mesmo aqui ao lado. Não lhes vi negro ou breu, e no sítio da lama havia a saudade de quem ama.


- Perdoas-me? – eu.


E tu:.


-Encontrarás o meu perdão logo, logo, a seguir ao teu...

18 julho 2010

aPENAs

aPENAs estava sentada
os olhos no mar agitado
memória quase apagada
corpo só, meio despido
quando a vaga me alcançou
desmanchou o meu torpor
sem pudor me encharcou
de água ressequida do amor
empurrada por uma carta
fez-se onda insolente
deixou na areia escrita
recado de estar ausente
sacudi-te da minha pele
gota triste, que não molha
água morna, sentir mole
que tem luz e que não brilha
aPENAs estava sentada
Com o mar ali à mão
na superfície agitada
contei da minha paixão
naquele instante bendito
atirei-me ao mar da lua
com coragem feita grito
líquida em mim, toda nua
mergulhei nele as palavras
os porquês que já gastei
as lágrimas que não secavas
o infinito em que te amei
mas o mar tinha a casa cheia
com o desvelo de um amante
deixou-me deitada na areia
rogou ao Sol que me levante…..

16 julho 2010

OLHAR


Deixa-me limpar-te o olhar

Pegar num pano com água e sabão e esfregar

Lavar as nódoas da vida

Essa pústula em ferida

Que te turva horizontes, que teima em te cegar

Quero ser espanador, sacudir esse pó de dor

Que te traz presa ao fundo

Que não te liberta um segundo

Que te encerra às escuras no leito seco do horror.

Quero usar lixívia para te desinfectar a alma

Que tens mas que não sentes

Que guardas e quase desmentes

Branca e alva, hás-de reconhecê-la na calma…

Deixas-me? Limpar-te o olhar?

15 julho 2010

SILÊNCIO

Há o silêncio. E há este silêncio. A este, oiço-o melhor. É mais límpido e o eco aninha-se-lhe confortavelmente no colo.

Há o silêncio. E há este silêncio. Este tolhe-me até as palavras que ainda não nasceram dentro de mim. Impõe o vazio tão completamente que me deixo revistar. Permito que me leve todo o conteúdo passível de emitir um ruído que seja. Fica oco o espaço da música, da gargalhada, do sussurro e da palavra irada. Se me sacudirem, ouvir-se-á o som do que restou chocando contra a saudade do que se foi.

Não me posso mexer. Porque há o silêncio e este silêncio e este quer-me silenciosa. Se andar o que resta de mim choca. E chocado ficaria o silêncio que me quer muda. Com o tinir das pedras que me deixou ficar.

Não posso chorar. Porque as lágrimas solidificam neste frio glaciar de silêncio de almas. E se alguma – feita cristal de gelo de forma pingente – toca este chão de pedra fria que me petrifica as pernas… vai-se o silêncio num «plim» e – ai de mim! Que o silêncio não quer assim.

Não posso sorrir. Que para isso tenho que inspirar e para isso tenho que respirar e para isso… falta-me o ar! Que a atmosfera é gelo seco pulverizado e mal espalhado. Que me queima e seca a narinas e chega já morte aos pulmões desesperados.

Resta-me o olhar para te ver nesse sorriso petrificado sob gelo pisado e amalgamado no desespero. Por isso espero.

Há-de haver um grito. Uma corda vocal que ainda saberás encontrar, que o amor saberá aquecer, que saberás dissimular. Há-de haver um acorde, um resto de canção que afinal consegues lembrar. Há-de haver um olhar devolvido num dia perdido. Para derreter o gelo prisioneiro que te faz dele o Inverno inteiro, para estilhaçar a geada e a água gelada. E os rios… correndo de novo, libertarão o seu rugir quando as pedras não os deixarem ir.

Em silêncio e meio vazia, fico e espero.

Aguardo que – desviante - um braço de água me arrebate no seu caminho. E que, percebendo-me fazia, me invada sem cerimónia e me encha mesmo até ao cimo. Que me aceite assim oferecida e me faça lago num abraço resignado, se não encontrar caminho, se não achar saída.

Se vieres cantar à minha beira… não estranhes o meu silêncio: busca o som no meu reflexo.

14 julho 2010

PONTO DE INTERROGAÇÃO

O teu mais não te sabe sempre a pouco?

Em cada menos que percorres sem pensar

Não te apercebes no caminho do som

De tanta coisa que deixas cair e ficar?

O teu tanto não encolhe quando chove?

Quando decides estendê-lo ao luar,

Quando te apetece arejá-lo ao Sol,

Não o sentes menos ao regressar?

O teu sempre não tem medo do infinito?

Não o vês afastar-se nas derivas,

Fazer-se estilhaços face aos medos

E deixar-se apertar por entre as dúvidas?

O teu querer não vai ao dicionário?

Não encontra adversário na impossibilidade,

Não descobre o obstáculo nas palavras,

Não se deita no colo da vontade?

Apaga-me o ponto de interrogação…

12 julho 2010

À REVELIA


Estava deitada no leito de estar
E dormia o sono que dorme quem pode
Enrolada nas mantas onde vagueiam os sonhos
De quem anda na vida com os pés descalços.
A meio da noite senti-te chegar
Virar-me do avesso, puxar e rasgar
Arrancaste-me de mim, levaste-me contigo
Na viagem que o destino te quis oferecer
Agora, deitada no leito de ti
Durmo o sono inquieto que não dorme quem ama
Enrolo-me nas pregas do avesso da tua pele
E percorro a vida na boleia dos teus passos
A meio da noite deixei-te ficar
Arranquei-te de ti – decidi-te roubar
És meu na viagem que decidi começar
À revelia do futuro, num NÒS a chegar.

09 julho 2010

LUA

Às vezes a lua, nos seus dias incompletos, procurava companhia.


Um dia deixou-se tombar, pensando que ninguém saberia. Caiu-me nos braços – que trago sempre abertos – e rolámos numa amálgama pelo chão. Depois de nos apartarmos, brilhávamos. Eu, de luz de lua. Ela de sorrisos. Nem falámos, só nos ficámos a olhar, enquanto regressava, içando-se a pulso para o seu baloiço de solidão, suspenso do princípio do Céu.


Com o tempo, aperfeiçoou a queda e eu cuidei para que os braços a recebessem com doçura. Já lhe sabia os dias – sempre aqueles em que era menor. Muitas vezes nada dizia. Com ar sério e brilho mortiço, procurava-me no bolso um sorriso, deixava-me uma promessa de luz e logo se ia. Cuidando que ninguém notaria.


Um dia igual - feito então diferente - chegou de mansinho para me surpreender, que com o tempo se vinha tornando menos tímida. Eu estava contigo, na sala. Deixou-se ficar, sem ninguém a ver. Ouviu as palavras que desenrolavas numa espécie de lamento, no meu colo de consolo: que a lua era tua guia, alto no firmamento. Que te sentias perdido nos dias compridos em que olhavas o céu e não a vias. Que esses dias eram agora quase todas as noites.


Às vezes a lua, nos seus dias incompletos, procura companhia.


E se me sinto só, sei onde vos encontrar.


Que às vezes vai à tua casa, em vez de vir à minha.

08 julho 2010

TRANÇAS

Porque sozinhos somos frágeis
Em tranças de fios quebradiços
Nos une a vida com mãos ágeis
Enquanto caminhamos postiços
No sentido forçado pelos sentidos
Por um rumo que nos leva perdidos.
Anda, vento forte – rajada –
Faz de tudo um quase nada
Desata-nos em madeixas soltas
Largadas às águas revoltas
Desta aventura feita da vida
Com a barragem destruída.
Que na nossa vulnerabilidade
Talvez sejamos mais completos
Do que entrançados sem vontade
Em tecidos rotos de afectos.

07 julho 2010

A MENTIRA DO ESPELHO

Olha-me no espelho e mente.
Guarda no escuro das sombras
Os desejos de quem só sente
O beijo por detrás das palavras.

06 julho 2010

SIM!

Sim!
Grita-me o silêncio!
Sim!
Grita-me a noite!
Sim!
Gritas-me da tua sombra
Quando me bates à porta,
Quando me vestes e sais
Sem nunca saber onde vais.
E eu vestida, de alma nua
Sigo-te porque me fiz tua
À ilharga dos teus passos
No cadeado dos teus braços.
Sim!
Sussurro à noite.
Sim!
Sussurro ao silêncio.
Sim!
Sussurra a minha sombra à tua...

04 julho 2010

FUGA


Beijas-me.

E o meu corpo foge de mim.

Ei-lo teu...

Obedece-te.

Sente-te.

Vive-te.

Regressa sem fazer barulho,

Brilhante do suor que roubou…

Quase escondido de ti

Pede-me abrigo ao ouvido

Que quer descansar num sorriso

Do tanto que se te deu!

03 julho 2010

ADEUS

Pára o tempo. E o alento
Que é hora da madrugada
Escuto o som do meu lamento
Nessa lágrima ainda guardada
Empurro-a para fora de mim
Não se guarda sofrimento assim.

Pára o tempo. E a consciência
Que é hora de liberdade
De despertar desta dormência
Em que encaixotei a saudade
Espalhada no sangue e na alma
Não sei vivê-la com calma.

Pára o tempo. E a tristeza
Que é hora de desistir
Deixo-te um bilhete na mesa
Despeço-me no teu dormir
Serão teus os sonhos meus
Mais ainda depois do adeus.