25 setembro 2010

NÃO SEJAS




Não sejas.

Não queiras.

Não me queiras.

Não faças.

Não beijes.

Não me beijes.

Não olhes.

Não abraces.

Não me abraces.

Que no ser te fazes nó

E no nó que te faço em mim

Te desfaço o olhar num beijo

E te prendo naquele abraço

Que gostavas de não querer.

Não queiras ser

O beijo não dado

No abraço só sonhado.

19 setembro 2010

SÓ ESTOU SÓ


Só.

Só estou só.

Nada demais.

Não treme a terra, não se agitam os céus, não se rebela o mar. Os dias são iguais. Os meus e os alheios. Os meus são só dias sós. Os de alguns dos outros também. Mas a solidão não se consola, mal se reconhece de dentro das cápsulas em que nos enclausura. Outra que não a minha, não é sequer. Só sei o que conheço. Ou reconheço.

Nada demais.

A não ser o som de todos os que me rodeiam. A não ser o toque de cada beijo, o peso de cada abraço, a cadência que os passos imprimem à mão da criança que levo diariamente à escola. Vivo no restolho das vidas que de mim esperam vida.

Só estou só.

Tão só esse facto invisível e refutável. Porque a invisibilidade legitima a ignorância. Pode-se fazer de conta que se não vê. Poder-se-á fingir que não se percebe o automático dos dias? As vinte e quatro horas quadriculadas num horário obrigado em jeito de normalidade? Engrenagem sem óleo, dobradiças que rangem, metal que chia… Lubrifica-se a alma?

Só estou. Só.

Vou estando. Muda por cima das minhas palavras, surda sob todos os sons, cega dentro do meu olhar. O beijo menos molhado, o corpo menos suado, o prazer fotocopiado dos dias em que era partilhado. Não se distingue o original da cópia decalcada onde as marcas do papel químico gritam aos olhares desatentos que se tocarem a folha com o dedo o sentimento se esborrata?

Nada demais.

Só estou só.

Só.

Redutora, reduzida, sílaba única, perfeita para encarcerar esta singularidade em forma de jaula. Palavra sem fuga: «só». Acentuada. Acentua-se a cada minuto em mim. Espreito os outros nos sorrisos que se oferecem quando comungam um olhar. Sei que sabem sentir a presença de quem amam na ausência. Entendo até o conceito. Esses sorrisos desviam-se de mim quando me aproximo. A solidão é repulsiva.

E carcereira das almas vazias de almas alheias.

Por isso é só solidão. Nada demais. Não treme a terra, não se agitam os céus, não se rebela o mar.

18 setembro 2010

QUEBRADA


Quebrada, recolho-me do teu olhar.
Caco após caco, arestas afiadas
Nos teus olhos me procuro
No reflexo tão menos cruel
Que o do meu próprio espelho
Quebrada, espalhada em ti
Devolves-me aos pedacinhos
Dedos cortados, em sangue
Sangria desmedida de amor
Gotas pingadas, rasto de dor
Quebrada, toda aos pedaços
Monto-me do chão em ferida
Ergo-me na memória de mim
Consolido-me em força oca
E por fora, pareço inteira.
Não me olhes
Não me toques
Não respires sequer:
Que me desfaço se vir o teu rosto
Que me rompo se sentir a tua mão
Que desapareço na tua respiração
Que o amor não se afoga no tempo

12 setembro 2010

BORRACHA MACIA


Quero encerrar-nos num abraço, trancar-nos com um beijo e apagar o mundo à nossa volta com uma borracha macia, daquelas brancas que vão ficando pequeninas do uso. Que me importa que o céu fique esborratado, que o mar fique sujo da cor do céu e que os campos se transformem num borrão indistinto? Quando a borracha ficar gasta, compro outra. E volto a apagar tudo o que nos rodeia até me doer o pulso. Até o céu ser branco porque deixou de existir, até o mar passar a ser só o sítio onde ondulava e até os campos secarem e se calarem os gritos das papoilas. Até esquecermos que existiu um sol.

Nesse momento… serás beijo e abraço em mim, beijarás com desvelo o pulso com que afanosamente apaguei a realidade. A mão desse pulso procurará a tua, para te levar, para te guiar quando o abraço tiver que afrouxar e as bocas forem beijo cansado e pedirem pausa. Não me negarás e a tua alma estará com a minha, no desejo de caminhar, de nos construir, de podermos ser. De olhos erguidos perscrutaremos o horizonte em busca de rumo. Que não existirá. E sentirei o pulso latejar.

Uma folha, quatro cantos, tu e eu encurralados na ausência de direcção. Sem estrelas para norte, sem céu para horizonte, sem mar para navegar, sem mato para desbravar. Em bicos de pés – abraçados – numa folha de papel frágil, amarrotada e sem futuros. Seremos perpetuamente o presente que desejamos e que nos poderemos ofertar: corpo e desejo, selados num beijo. Encarcerados num momento, alheios ao mundo e ao seu movimento.

Avistar-te-ei num dos cantos, sentado, ainda mal acordado e pensando que no canto oposto o sono ainda me seduz. Em busca de nós no branco descarado da folha. Notando que o papel se torna quebradiço sob os nossos pés, por mais que nos sintamos levitar num estado de amor total e completo. Sentirás medo. Porque em lado algum encontrarão vestígios de ti, se a folha se rasgar, se ceder ao nosso peso, se o abismo nos engolir.

Ficarei desperta para o teu olhar. Mesmo quando os teus olhos estiverem fechados – principalmente quando os teus olhos se esconderem dos meus sob as pálpebras cerradas. Sempre que o teu peito me cantar o som descompassado do teu coração num abraço. Sempre que nos desfizermos no molhado de um beijo. Sentirei o teu olhar no abismo – porque é abismo tudo o que não conhecemos e eu terei apagado tudo o que podíamos conhecer. E todos os caminhos do sonho.

Um dia o teu olhar será um adeus presente. Será uma lágrima não vertida, um oceano que me inundará a cada beijo, que devolverei no auge do desejo, depois de me ter afogado em ti e quase ter desejado morrer assim. Será um abraço mal dado, um corpo mal tocado, como um piano desafinado que mesmo com a partitura certa não devolve a melodia sem uma ponta de ironia. Um dia, ser-me-ás infiel. Ou eu a ti, na verdade branca e imponente de uma folha de papel gasta e frágil. Ainda que só no sentimento.

O futuro apaga-se, mas não o tempo. E os dias chegam sempre, mesmo que se lhes peça para esperar. O dia chegará. Aquele em que o vazio de horizonte será mais forte do que o conforto da segurança. Em que a paixão se mudará de armas e bagagens para a casa da memória. Em que a pele doente de Alzheimer não se lembrará já do apelo obrigatório do avesso do outro. Nesse dia pisaremos forte e rasgaremos a folha.

Não te aperceberás antes do fim, mas terás menos um centímetro de papel do que a medida padronizada. Não se notará, porque o branco exclui os limites e apaga as sombras. Mas no dia do teu abismo, quando o teu olhar – então sempre diagonal – me disser que se prepara para se lançar… desenhar-te-ei uma porta, com o lápis que o centímetro a menos sempre ocultou. E o beijo que te darei será o último. E não terei forças para o abraço derradeiro sem te implorar que fiques. Por isso não o terás.

Quando fechares a porta – não resistirás ao apelo de te oferecer ao sol e banhar no mar e correr nos campos e olhar as nuvens no céu…– pedir-te-ei apenas que me deixes a borracha. Para apagar a porta que não usarei. E o teu abismo. Para me perder nele para sempre. Se tiveres saudades – um dia qualquer, porque os dias quaisquer também chegam sempre – fiquei com o lápis. Procura a página virada. Estaremos lá escritos.

01 setembro 2010

MADRUGADA


A madrugada chegou mais cedo
P’ra me contar muito em segredo
Que o Mar já não sabe cantar
E as ondas o não querem tocar.
Bateu-me à porta, esbaforida
Toda rasgada, noite em ferida
Temendo o Sol e a queimadura
Da sua raiva vestida amargura.

Madrugada de paixão
Guardas-me o perdão
Que tanto nego, noite fora
Como se ontem fosse agora
Madrugada de ilusão
Esconde-me na escuridão
Dos meus olhos, que me fitam
Dos meus medos, que me gritam
Arrasto gasto no chão
Este resto de perdão
Que piso e deixo ficar
A noite toda a chorar

A madrugada não quis entrar
Que tinha que ir, sem demorar
Deixou em lágrimas o seu recado
De dor e saudade de um passado
Em que rios corriam nos leitos
Rasgados bem fundo nos peitos
Forrados de paz, de ternura
Rocha de amor, pedra mais dura

Madrugada de tormento
Guardas-me o sofrimento
Que tanto nego, noite fora
Como se ontem fosse agora
Madrugada de lamento
Esconde-me por um momento
Dos meus olhos, que me fitam
Dos meus medos, que me gritam
Arrasto gasto no chão
Este resto de perdão
Que piso e deixo ficar
A noite toda a chorar

A madrugada, deixei-a ir
Que tinha mesmo que partir
Roubou-me as mágoas da vida
Levou-as em viagem só de ida
De recibo deixou o sorriso
No perdão que tanto preciso
E um recado vestido de calma
Escrito sem tinta, na minha alma

Madrugada de esperança
Guardas-me ainda criança
No meu escuro, noite fora
Como se ontem fosse agora
Madrugada carregada
Levas-me a mágoa, pesada
Dos meus olhos, que te fitam
Dos meus medos, que te gritam
Arrasto grata cada dia
Este resto de magia
Que sinto e deixo ficar
A noite toda a cantar