31 janeiro 2010

Lembras-te?...


É linda rosa de pátio interior protegida da chuva e do vento e do mais comum espezinhar. Deitada ao rio, de margem em margem, tenta fixar seu pé. Puro azar.... Tão boa raiz não se ter amarrado solida e continuamente florescido.

-(para) sempre aqui, por aí... -

25 janeiro 2010

LUZ



Vermelho. Um coice.
Escarlate líquido no chão. Mão sem dono, pesada de guardar meses de desespero, cansada de vazios, promessas, ilusões frustradas, ocupações fugazes, decepções sucessivas. Inútil nos olhos grandes onde cabe tudo o que sabe não poder dar. Mão estéril. Em excesso.

Preto. O caminho.
Negra a linha quase recta, obscura a razão do movimento, sentido obrigatório numa racionalidade órfã de lógica, liberta de espartilho, adoptada prontamente pela ira. Pernas para lá do horror, no sentido inverso, encarnadas de fúria, passadas ágeis em demasia, pontaria tristemente certeira.

Cinzento. O medo.
Cinza, reduzido a cinzas por dentro, pardo de medo – primordial – defesa no ataque. É o mundo que o cerca e ameaça para além da sua vida. Os olhos grandes estão num ecrã, múltiplos, iguais, amedrontados. Abrem caminho ao pânico ampliado: como protegê-los? Mais um, e mais um, e mais um, e mais um…

Branco. O vazio.
Alva, a consciência de outrora, acorda chumbo, nos olhos que se fecham, que se esfregam e que se fazem olhar, que se obrigam a ver. Tombado sobre os joelhos, ergue-se a custo da luta finalmente terminada. Ganha. Com sensação de derrota – por onde andou? Quem foi naqueles minutos, onde esteve, que caminhos inimagináveis trilhou?

Transparente. O destino.
Líquidas as cores, filtradas entre lágrimas, mãos no rosto, rasgam o cabelo, detêm-se na nuca, acariciam a têmpora, desdobrando o ponto de interrogação numa linha com ponto final. Tempo para o parágrafo. Sem maiúscula na linha seguinte. FIM à espera de vez, história acabada.

Incolor. O Presente.
Não são ilusão os olhos grandes nos seus, arregalados de desespero e de outra coisa que não percebe bem. É real – e quente – a mão que lhe desliza a medo pelo braço. E doce a voz – muito doce – que o embala enquanto lhe destrói o parágrafo e reconstitui o ponto de interrogação. O som do metal ouve-se longe, no chão, arrastando a ira, o medo animal, a vida que tinha, tudo ao mesmo tempo. Menos o presente. Incolor, não divisa cores com que o pintar.

De todas as cores. O Amor.
A outra coisa… como uma charada, intrometendo-se entre cada passo do regresso: que mais há naquele olhar apavorado, o que se esconde para além daquele medo que ninguém deveria ter que sentir? Cabisbaixo, maquinalmente, passos emparelhados, seguindo a cadência de quem sempre o seguiu, estanca como um autómato: o vermelho grita-lhe do preto da estrada, ali, na passagem. Revive o medo cinzento para além de uma memória imediata completamente branca, inexistente. Lágrimas transparentes formam-se sobre um passado colorido e a perspectiva incolor de um futuro que não sabe se deseja. Evita o olhar a seu lado (que o intriga) e, para além da soleira da porta, resolve o mistério nos outros olhos – gigantes, corajosos – que o esperam com inabalado amor. Para além do desespero. Antes, durante e depois daquele interminável abraço a três, dominado pelas lágrimas.

Na paleta do pintor. O Futuro.
Mãos unidas, olhos nos olhos, a promessa da verdade por dentro e para fora. O reencontro nos olhos dos seus da pessoa que foi, do ser humano que é. Agiganta-se a incredulidade e instala-se a inquietude perante o que pôde ser - como o pôde fazer? Como? Como? Ganhou uma segunda sombra.
Na transparência de um olhar inteiro, a esperança fica de esboço, a preto e branco. Na mão do artista – não o é a vida? – uma paleta repleta de possibilidades. Muitos tons escuros, eventualmente. Mas não brilha mais uma Luz no escuro?

PORQUE



Porque… Chove uma frase, fica na ideia, pequena e leve, sem incomodar. Perante um teclado, começa a estalar, como se gritasse por liberdade. Só umas palavritas, tamborilando na memória. Mas no papel, no ecrã do computador, já são locomotiva, arrastam uma história, um enredo sempre espontâneo onde irrompem personagens roubadas ao presente e aos passados, moldadas sem pudor ou premeditação. Deixam de ter autor quando fogem para a trama, quando a traçam a seu bel-prazer, usando-me só como veículo para um destino incerto.
Imagino-me uma esponja, sob a chuva miudinha, inchando lentamente, até ao ponto em que a capacidade de absorção se esgota e o excesso se solta inexoravelmente: a água busca um caminho, segue o seu rumo. Liberta do peso, não me sei afastar, e continuo à mercê das gotículas pequeninas, de alegrias e tristezas, ansiedades e certezas alheias, que se impregnam, que se entranham e encontram espaço em mim. Sinto vidas em paralelo. Muitas. Ora permanecem, ora me atravessam, mas deixam sempre rastro, sinais do caminho que levam – doces, os felizes. Pesam as pegadas turbulentas, ficam fundas e não se deixam cobrir dos sorrisos da minha vida feliz.
E então…. Um papel, um teclado, uma frase já irritante que conquista alforria: sem as destruir, aliso as marcas alheias, ofereço-as. Vingo-me inconscientemente, misturando-as, roubando-lhes os dramas, as experiências, as alegrias e os êxtases, atiradas que são para uma folha, onde as posso ler, entender, até reviver, à distância segura de quem não tem que continuar a senti-las.
Porque… Preciso de espaço para mim, para além dos restos dos outros. Para o excesso de mim própria. Um só corpo, uma só vida não chegam! Como, se sinto em paralelo? Se por detrás da energia, da alegria, do sorriso – genuínos – intuo a apatia, a tristeza, as lágrimas que não tenho porque derramar? Como se estivesse cheia de entrelinhas, como se uma sombra se soubesse esconder tão bem de dia como de noite, colada às minhas costas, opaca.
Ao entardecer, num espelho de águas calmas, uma montanha divide-se em duas. Mal se distinguem, se a brisa não se intrometer e denunciar a imagem reflectida. Original e reflexo... Duas imagens tão iguais, tão intrinsecamente diferentes. Uma é certeza. Está no seu lugar, tem a responsabilidade de aí permanecer, suporta tudo, suporta vida. A outra, superficial, efémera, será menos real? Só a vê quem a procura, quem a quer ver. Que segredos encerra?
Que reflexos ganham o papel à minha ordem? Quantos se evadem à revelia? Quanto de mim está disperso por entre as histórias dos outros? Que portas escancaro, que janelas entreabro, que acessos me recuso a revelar? Que lágrimas oculto por entre as alheias, que mágoas divido, que alegrias e êxtases lhes empresto, quantos sorrisos lhes arranco?
Como a árvore bela e frondosa, que floresce em rosa, hino à alegria: o que oferece nas flores viçosas, que histórias carrega gravadas no tronco forte, o que guarda nas raízes, que ninguém vê -ocultas, profundas, essenciais….
Porque… escrever é viver-me do avesso, para além de mim, para além dos limites que um longo treino me impede de violar. É espremer a esponja com suavidade ou violência e recolher as gotas numa folha de papel, soltá-las sem as desprezar, dar-lhes sentido. Fazê-las viver de novo – tantas vezes num novo destino. E depois… esponja que não sei deixar de ser, eis-me de novo, sob a chuva miudinha, sem abrigo, sem impermeável para as vidas alheias. Que passam, que vão e que ficam em mim, que me ensinam a identificar, num destino sem direito a folha de papel, impermanente como a vida, mais e mais e mais e mais e mais… motivos para sorrir!

MEMÓRIAS

Da pele lisa, as memórias. Cristalinas na bruma de todas as coisas. Vivas e brilhantes num resto de vida, no sorriso que de postiço só tem a prótese – faz falta, mas incomoda.

- A tua boca escreve-te alegria no rosto. É verdade! Olha aqui no espelho: vês? Os lábios são desenhados, nem muito finos, nem muito grossos. A distância entre o nariz e o queixo é perfeita. E aqui – olha, estou a falar a sério! – aqui, nos cantos fazem este jeitinho, como se estivesses a sorrir. Mesmo quando estás triste. Ficas irresistível quando sorris assim…

Foi o tempo. Só a sua passagem, democrática. Tão natural, tão combatida. Incompreendida. Erodiu-lhe a epiderme, sulcou-a, abriu valas para guardar recordações, marcou-a para fixar referências, como num mapa.

- É transparente, a tua pele. Se a tivesses dentro de ti e se me esforçasse realmente, acho que te conseguia ver a alma através dela. Tão macia… Apetece-me beijá-la, milímetro a milímetro, sem tempo. Deixas-me?

Passaram-lhe por fora as horas, roubaram-lhe a cor do cabelo, furtivamente, fio a fio, até um dia se olhar realmente ao espelho. Habituou-se à moldura branca no rosto.

- A esta hora, quando o trazes assim solto, o teu cabelo é a imagem mais bonita de toda a paisagem. Rouba os reflexos ao sol que se põe, faz esquecer o brilho do mar. Apetece-me perder-me nele, cheirá-lo, senti-lo por entre os meus dedos enquanto o dia se acaba e a noite promete…

Os olhos combatem o peso das pálpebras, vencidas há muito. Escondem a sua vivacidade inquisidora, a perspicácia acutilante com que lhe mostravam um mundo nítido e focado. Até as sobrancelhas desistiram, cansadas de traduzir emoções, de acompanhar expressões de alegria, de tristeza, de espanto e de fúria, como um guitarrista acompanha a fadista: na sombra, mas indispensável.

- Se fosse lágrima, tudo faria para que os teus olhos nunca me derramassem. Ficaria para sempre nesse lago azul profundo, nessa paz cor de céu, mais não sabendo para além do que me pudessem mostrar. Não sei se me perco ou me encontro no teu olhar. É indiferente. Só não posso perder-te.

As lentes são inultrapassáveis há já muito e as armações ferem-lhe o nariz no local onde assentam, num hábito nunca ganho, numa luta inútil, por mais caras e leves que sejam. O que dói mais, se calhar, é a dependência, uma aversão de sempre. Para sempre.

- Narizinho… Não, não te zangues! Quando falas a ponta do nariz mexe, nunca reparaste? Como se quisesses fazer cócegas no céu! Não, não é grande. Mas é deliciosamente arrebitado, como o de uma menina travessa! E mexe – olha, vês? Vês? Ainda agora…. Quando falas… não consegues impedir! Narizinho….

O espelho já foi inimigo. Como os filmes, as fotografias, a balança, os biquínis, as roupas justas… E afinal, foi só o tempo impondo a sua inexorável troca: um pouco de beleza por cada conquista de sabedoria. Um negócio de justiça questionável. E que qualquer espelho transforma em abuso ignóbil aos olhos dos jovens que ainda não sabem... Ainda!

- És linda. Mesmo muito bonita… É verdade, não faças essa cara - apesar de esse franzir de sobrolho te dar muita graça! Ao longe é fácil perceber. Mais de perto é difícil, porque num momento acho que é o olhar, depois o sorriso, depois o cabelo… Busco em vão um protagonista! Mas já descobri: se me afastar um pouco – fica aí! Vá lá…. – é como um quadro, em que tudo está lá e o pintor não falhou a mão: o traço fino do rosto, entre as madeixas claras de luz que o enquadram, os olhos que as sobrancelhas expressivas destacam, o nariz irreverente pontilhado de sardas, e a boca que sorri sempre, mesmo quando estás séria. Linda. És impossivelmente bonita…

O corpo… sobra-lhe em pele preguiçosa, falta-lhe sempre mais em firmeza. Não há artifício que lhe recoloque o peito no lugar sem vincar as costas curvadas. A obediência foi-se e a descoberta diária é em sentido inverso à das crianças. Tudo tem um preço… Compreender não é barato.

- Modas! Mulheres! Nunca me hei-de habituar – como se abre esta coisa? Parece um espartilho, colchetes e mais colchetes! Não te rias! Ajuda-me, vá lá… Como suportas esta tortura? Até porque não precisas, não te faz falta nenhuma, meu amor….

As pernas ganharam uma rede azulada que parece querer rebentar a pele escamada, quebradiça. E os ossos disputam o protagonismo com as manchas nas mãos magras. E trémulas agora. Virar as páginas de um livro ou de um álbum de fotografias era um desafio feito recentemente uma das últimas derrotas do corpo. Na memória… Na memória as páginas ganham obediência, são dóceis e aquiescentes.

- Espera! Anda cá! Vais molhar-te toda! Já me molhaste também…. Tens que ser sempre tão irreverente? Hum? Apanhei-te! Não há pernas que te valham agora: és minha! Estás à minha mercê! Não resistas! Tens as mãos frias. Dá-me um abraço…

Do cadeirão confortável, mal divisa as fotografias sobre a mesa-de-cabeceira. O tempo pagou-lhe a beleza com paz, recordações e com a capacidade de sentir as entrelinhas dos outros. Teve comiseração deixando-lhe intacto o azul de onde a lágrima nunca quis sair. E – pequena vitória – a inclemente gravidade não lhe destruiu a alegria pintada no rosto. Os lábios, mirrados nas rugas, ostentam um sorriso mesmo quando está triste. Um sorriso que memórias lisas incendeiam, de peles jovens para além das horas.

Memórias que o tempo não sabe enrugar…

A GOTA



As várias gotículas foram-se libertando dos poros da sua pele. Quando a união fez a força, ganharam o direito à gravidade e a uma identidade. A gota deslizou por entre o cabelo sedoso, junto à nuca, e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Menos pela gota do que pela memória de uma unha que pouco antes aflorara a linha revolta do seu cabelo naquele preciso local. Lentamente, meio arranhando, meio acariciando. A meio...

Indiferente, arrastada por aquela força invisível, a gota aflorou-lhe a pele do pescoço, normalmente oculta pelo colarinho da camisa. Apercebeu-se, tal como ela o fizera com gula, da textura suave, do odor doce misturado com o sabor salgado do suor anterior. Fez-lhe cócegas em jeito de provocação, ciumenta dos lábios entreabertos e do caminho que fizeram antes de si.

Aproveitou a ausência de camisa e espreitou cuidadosamente para a omoplata oferecida – muitas outras haviam encontrado o seu fim precisamente ali, onde um colarinho alvo fazia de porteiro inexorável da sua intimidade. A pele nua era ali mais branca, mais macia. Apetecia rebolar preguiçosamente por entre os poros e os sinais, pequenos e espalhados ao acaso, como estrelas num céu com cores invertidas, ou como se alguém os tivesse lançado em jeito de pitada de graça.

Como não despertasse suspeitas, aventurou-se para além do limite do razoável, seguindo a linha das costas, irregular onde as vértebras se encadeiam, imaginando-se um rio que corre no mais maravilhoso dos leitos. Outras se haviam extinguido ali... provavelmente nascidas nas imediações. Rastros de sal na pele já seca denunciavam a sua fugaz existência. Na pequena curva antes do cóccix, fez-se lago, sem a ajuda da gravidade. Ali adormeceu, feliz.

Um movimento acordou-a. Pouco de si tinha perdido, mal se evaporara. E a curiosidade despertara agravada. O que encontraria para além das costas amplas, tranquilas, oferecidas, pontilhadas de estrelas inversas? Até onde a ousadia levaria uma simples gota de suor?

Sentiu-se rolar, num movimento lento e a euforia tomou-a perante a possibilidade de explorar um pouco mais, de ir mais longe... Não pôde perceber que dois olhares renasciam, misturados de desejo e vontade, sincronizados num sentimento, abrindo sorrisos e beijos. Teria saciado a curiosidade, não fora a mão dela, ávida, soltar-se-lhe do cabelo ainda húmido e revolto para descer lentamente ao longo dos sinais tão bem desalinhados das suas costas, sem perceber sequer que uma gota curiosa estava no seu caminho…

ONDE TE TENHO?












Porque te oiço quando não falas,
Quando são meus os teus abraços,
Sozinha que deixo a velha máscara?
Nos teus silêncios - tantas palavras
Mensagens enchendo-me os espaços
Vazios de sempre – é longa a espera!

Porque te adivinho, quando estás aí?
O som não chega, a vista não alcança,
Sem pistas, sem mapa de te encontrar:
Só as tuas ausências no que não vivi,
A mão firme que me empurra, criança,
No sentido da vida sem medo de errar.

Porque sinto presentes - a toda a hora –
Os olhos que velam de perto – assim?
De onde me encantas? Estás escondido?
É que mesmo sem te ter, pela vida fora
Te encontro perto, bem fundo em mim.
Não te tenho… Porque não me és perdido?

15 janeiro 2010

PALAVRAS AO VENTO

No sopro do vento chegou-me a lembrança
De dedos velozes e metal massacrado.
Na volta do vento devolvi a esperança
De ouvir novamente o som rendilhado
De notas selvagens domadas pela alma
De um homem inquieto com capa de calma.

Na força do vento se elevará no ar
Por tempos sem fim – só com intervalos…
A soma das brisas far-me-á recordar
Olhares, silêncios, em suma, momentos…
E como criança, fica-me a ansiedade
De nos intervalos matar a saudade.

Julho 2009

A CURIOSIDADE DO BEIJO

A vontade não era muita. Que é como quem diz: nenhuma. Mas entre o consciente e o inconsciente residem todos os ruídos possíveis no esquema inscrito pela violência do branco no negro do quadro da escola: emissor – canal –/ RUÍDO RUÍDO RUÍDO /- mensagem – receptor. Da falha, a vontade de ir, consciente. Sempre desobediente.

Como a negativa pouco convincente da criança (que choraminga dominada pelo sono e insiste em não dormir), tomada pelo hábito, procuro nos arquivos o sorriso adequado, os gestos mais cativantes, as palavras com provas dadas, que, cuidadosamente alinhadas em frases garantem a atenção e o sorriso dos demais – é festa quando todos sorriem, certo?

Um tédio metediço é violentamente rechaçado, remetido à sua insignificância, redobrados que são os esforços para soltar a alegria, buscando na sonoridade da gargalhada o conteúdo lógico, associado ao sentimento – não é rir estar feliz?

Rodeiam-me paredes tristes, enfeitadas de imitações de natureza que, de falsificadas, destoam. E pessoas que os anos já conhecem de longe, quase todas perdidas no seu ar alegre, buscando com o olhar vazio outra negativa. Como na matemática: menos com menos dá mais.

Interrogo-me, criminosamente, a medo, ousando desafiar a consciência, se realmente quero continuar naquele carrossel de músicas de vinil, mais gastas que o seu suporte, soltando-se dos lábios maioritariamente anónimos, ferindo-me os ouvidos. A resposta não é coerente com os meus lábios que se movem também, soltando sons articulados, tornando-me apenas mais uma voz perdida entre as demais.

Os copos enchem-se e esvaziam-se do néctar do São Martinho, as castanhas teimam em não soltar a pele, mas emanam sem se lhes pedir o cheiro que roubaram à erva-doce. E as emoções libertam-se. As alheias. Que as minhas, prefiro-as guardadas. E os sorrisos genuínos surgem nalguns rostos, ostensivos, assertivos, como máximos que o carro no sentido oposto não desligou a tempo.

Sabem a falso as castanhas. Cozidas. Como o rosto dos outros, à luz de médios que não ofuscam. Entristecem. Iluminam uma disponibilidade tardia, uma solidão repelida, expulsa através do olhar, que só não se nota na breve fracção de segundos em que se pestaneja. Como se latejasse, intermitentemente.

Imagino o que está para trás da cortina do palco da vida desses olhares. A da mini-saia. Na montra. Em saldo… E se o tamanho não estimula, entreabre-se as pernas, e se o entreabrir não atrai, abre-se o vazio. Esgotam-se as armas ainda antes da batalha. E o campo fica lavrado, pronto para receber as sementes da dúvida e as lágrimas da tristeza. E de terra tão bem amanhada não há cultura que vingue. Nem uma espiga de trigo, nem uma papoila rebelde quebrando o castanho neutro da terra.

Derrotada na consciência, quando o tédio chocou de frente comigo sem se tentar sequer desviar, procurei a chave, bem no fundo do bolso, e dispus-me a abrir a porta e fechar-me ali mesmo, dentro de mim, até alguém tomar a iniciativa de desertar.

Artista! A palavra que me despertou do meu torpor interior, enquanto as minhas mãos batiam palmas, a minha boca mastigava, e o pé balançava a um ritmo que devia ser o da música cantada pelo barbudo que não se aguentava nas notas mais altas. «Quem é o artista?», «Quem é o artista?» e não percebia o que me violentava mais na minha vontade de introspecção, se o som da frase repetida ou as mãos que me apertavam o braço, tentando obter a minha atenção.

De longe, percebi que era vivo no meio de mortos, vermelho no meio do verde, líquido no meio de sólidos, uma completa antítese da realidade ali gerada, nos oitenta metros quadrados barulhentos e de odor a fritos e erva-doce que me enclausuravam. Era alto, t-shirt preta. Apenas. Antes que a porta se fechasse, tentei regressar ao conforto do alheamento interior, deixando os meus músculos livres para corresponderem às expectativas alheias, desenhando sorrisos, gargalhadas, gestos amplos ilustrando comentários inteligentes e espirituosos. Que encantavam a todos. E que nunca falham. Mas o «artista» não cedeu. Nem aos gestos, nem à presença de espírito. Nem sequer ao que não precisava de ser fabricado – o aspecto físico.

Estranho… da primeira fila foi difícil olhar nos olhos. É mais fácil quando o adversário se rende. Pode ser magnânimo, o olhar. Mas… e assim? Qual a expressão, a duração, a intensidade? Encontrei conforto no fascínio dos dedos, movendo-se sobre os fios, transmitindo ordens firmes às cordas de aço, com uma precisão que a velocidade parecia impossibilitar à partida e obtendo delas uma obediência que não condiz com a sua natureza inquebrantável de metal, como se cada nota fosse ora um gemido, ora um grito de raiva, sempre imbuídos da vontade de revolta do jugo daquelas mãos autoritárias que as dominam… Para piorar as coisas, pobres cordas, vêm abafado seu clamor, seu carpir, pela doçura incoerente de uma voz que se lhes sobrepõe, roubando-lhes o protagonismo que os dedos lhes arrancam violentamente.

Deixei-me embalar e, com o sono, abriu-se a porta, o RUÍDO RUÍDO RUÍDO desobstruiu o canal e o consciente fez as pazes com o inconsciente abrindo na comunicação entre eles o sinal verde para a minha decisão. Pensei que não quisesse ir. Era difícil. Porque o faria? Com desconhecidos, desinteressantes, fora de horas. Podia ser maneta, ainda assim teria dedos suficientes para contar os sorrisos laboriosamente arrancados do ar distante, desligado, quase pedante com que ocupou o lugar em frente ao meu. A resposta era óbvia, mas…

O destino era incerto, não tive tempo para pensar nisso, siderada que estava ainda com a incoerência do sim. Nem com a postura, nem com o olhar, nem com a ausência do sorriso. Não batia certo com nada. Na tranquilidade da música ao vivo, a atenção dispersa tocava-me de quando em quando, sempre na forma de desafio, subtilmente denunciando a percepção da minha fragilidade.

Batia-me com a espada partida da estocada do sim e isso era do conhecimento do adversário. Que atacava só na medida em que eu me podia defender, cavalheirescamente. Gradualmente empurrando-me contra a parede. Tornando-me vítima de mim própria, da minha teia, enrolando-me em cada um dos seus fios, e, de firmes que eram, porque tão cuidadosamente tecidos, impossibilitando-me correr em jeito de fuga.

E num «orgasmo» doce de tragos pequenos, pouco saboreados, em jeito disfarce, o tempo passou e impôs o regresso, não sem que antes, e em jeito de despedida, o «artista» lançasse o seu contacto contra a teia em que estava envolta, por mim urdida, e nem por isso mais confortável.

Impulso? Não. O caminho estava traçado, a curiosidade sai sempre vencedora e a vontade é sua escrava. O contacto foi lúcido. Os seus perigos também. Por isso mais estimulantes, com ar de precipício, antevendo o prazer do vento no rosto e nos cabelos mesmo na beira, sem a preocupação de saltar ou não. Isso é para o vento decidir: se me empurra ou nem por isso…

Jogámos um jogo sem nos preocupamos em encontrar adjectivos. Conforto absoluto numa intimidade intuída, presente, cativa nos olhares que se buscam mas que se lêem ainda antes de se cruzarem. Alento na pressa que não se tem.

O prémio? Do beijo, a curiosidade revelada, e o ranger da janela que se entreabre preguiçosamente convidando veementemente a espreitar…

UM DIA QUENTE DE OUTONO


Trazia nos pés os restos do dia...

Sabia da necessidade do banho, mas ignorava-a. Queria perpetuar, do dia, um não sei o quê. Como se cobrisse o seu corpo uma película frágil mas real, de algo que queria manter junto de si a todo o custo.

O sol brilhou nessa manhã e acordou a sua alma, ainda antes dos seus olhos se abrirem. Como se lhe anunciasse, eufórico, que lhe pressentia um dia absolutamente maravilhoso. Foi convincente o suficiente, aquele braço iluminado que rasgou as cortinas brancas, para a fazer erguer bem cedo da cama.

A água afagou-lhe o corpo com o desvelo de um amante antigo, percorrendo com familiaridade todos os recantos e a toalha branca, enrolada nos cabelos, deu-lhe uma extraordinária sensação de conforto, de pureza. Jamais havia pensado na importância da toalha com que secamos o cabelo.

Revolto, o cabelo tocou-lhe no fundo das costas, soltando algumas gotículas de água, marotas, à medida que a escova abria estradas lisas nas mechas selvagens e húmidas.

Saiu para a rua e à medida que o cabelo se libertava, secando à mercê do sol e do vento, algo dentro de si se aligeirava, como que se tornava leve. Caminhou decididamente, seguindo o trilho que o sol traçou, ainda antes da sua consciência.

Quando olhava para os pés, sorria...

Um pequeno-almoço saboreado ao ritmo de pequeno-almoço, congelando com o desprezo o movimento dos ponteiros do relógio. Os comboios intercalavam-se a espaços curtos, como uma excursão monótona de lagartas, o destino confinado ao ir e vir da primeira à última estação.

As filas vistas de fora. A senhora gorda a quem os braços não cabem na manga curta da camisa de poliéster a imitar seda, esforçando-se por não perder a posição de líder do pelotão. Não apanhou o último comboio, para ser agora a primeira e ir sentada. O moço de fato ligeiramente largo, desajeitado, a quem a pasta do computador portátil incomoda, como se o peso de toda a responsabilidade do emprego novo se concentrasse naquela mão esquerda, forçando o ombro a descair. As duas rapariguinhas, fluorescentes de vida e despreocupação, com o brilho da manhã reflectido no metal que ostentam nos dentes enquanto soltam risadinhas parvas, a propósito de mais uma qualquer experiência iniciática...

Sentou-se no sofá e colocou os pés em cima da mesa da sala, para melhor contemplar os contemplar, em jeito de troféu, sempre com aquele sorriso, muito presente, em contraste com o olhar ausente...

Há quanto tempo o não fazia, mas soube bem, tão bem.... O Chefe no papel de mãe inquisidora, anteviu. Mas era irresistível. Como nos dias em que se baldava às aulas o dia inteiro e rezava para que as vizinhas a não vissem. Se a mãe desconfiasse!.... E tudo o que fazia nessas ocasiões, do sabor tão doce do proibido, tinha um toque de magia sem varinha de ilusionista. Era real, fugaz, mas real.

Nem notou que as nuvens lhe seguiram o exemplo, e não compareceram no seu lugar de trabalho costumeiro, como seria de esperar num dia de Outono confiável... Num exercício de absoluta prepotência, o Sol impôs-se uma vez mais e, já movida por quatro rodas, desbravou o alcatrão em sentido contrário ao movimento pendular típico de uma segunda feira em grandes cidades.

De tão tranquila, os olhos fechavam-se-lhe e, involuntariamente, um dos pés deslizou um pouco sobre o outro, espalhando um pouco do tesouro do seu dia sobre a mesa...

O ar ali, solto dos paralelepípedos encavalitados, das cicatrizes negras em que circulam chaminés semi-ocultas, dos corpos que o aspiram e o expiram sujo de maldade e tristeza, era fresco, e soprava o suficiente apenas para lhe acariciar os cabelos com a doçura com que uma mãe penteia uma filha. E o verde era verde, sem filtros cinzentos de poluição. E a terra tinha o cheiro distinto da terra, sem desodorizantes, ambientadores ou ar condicionado. Ali tão perto. Verdadeiramente perto, tão próximo do seu mundo, da sua realidade quotidiana que a transição quase parecia traumática, de tão descontinuada.

O som não era doce, porque transmitia poder, um poder tremendo, tão forte que bastava ouvi-lo para sentir a invencibilidade. Mas que não assustava. Um poder não invasivo, um poder não exposto, que de tão inerente, de tão intrínseco, não podia ser percebido, apenas intuído. E de tão sereno, esse poder atraía...

O som perdia-se à medida que o movimento levava as pequenas pedras para longe, e adivinhava-se-lhes o destino. Mas a altura e o caminho íngreme não a impediram e os arbustos revelaram-se amigos preciosos. Da coragem da descida a recompensa foi a absoluta tranquilidade da pequena enseada, encaixada - a custo - numa moldura severa de penhascos atrás e mar à frente, tendo por tapete as pobres pedrinhas (tantas...) vítimas da gravidade e o céu benevolente –estranhamente ensolarado nesse dia.

Sentou-se e preparou-se para estar sozinha. Não sendo habitual, tal tarefa afigurou-se-lhe ciclópica, quase dolorosa, mas ao mesmo tempo, possivelmente libertadora. Aqueceu os dedos, para, um a um, tentar desatar os laços que prendem a sua consciência ao mundo – apertados, quase todos! – e que a enquadram num contexto, correspondendo ao que de si é esperado. Inquietou-se com a dificuldade. Não se imaginou tão presa. Mas, se alguns eram laçarotes airosos, soltos, a maioria eram nós de marinheiro, intrincados, fossilizados pelo tempo.

Devia ser involuntário, provavelmente, mas no seu sono, agora mais profundo, esfregou os pés mais vigorosamente um contra o outro...

Embrenhada na tarefa que o Sol lhe havia proposto, ainda antes da sua consciência se erguer nesse dia, assustou-se com um cão que passou agitado por sobre as suas pernas, salpicando-a de água salgada. Quase se zangou com o pobre animal, mas antes sentiu a sua inquietação e perdeu-se a zanga. Só então notou que a maré havia vazado e a enseada tinha agora uma orla de areia que amortecia o contacto do mar com as pedrinhas ásperas roubadas à falésia e que abria uma espécie de caminho, como se de um portal se tratasse.

Seria bonito de observar em pormenor, mas o cão ladrava furiosamente, como que procurando chamar a sua atenção. Aproveitou a oportunidade – um excelente álibi – para deixar os nós e os laços, levantou-se e enterrou os pés na areia húmida e fria que lhe mostrava o caminho até à ponta da falésia, onde se adivinhava uma outra enseada...

As pedrinhas maiores, mais pesadas, soltavam-se-lhe dos pés, à medida que estes secavam e que, no seu repouso tranquilo, ela se movimentava docemente....

Aquela praia era um pouco maior, mas não a observou em pormenor. Reparou imediatamente no corpo que a areia acolhia, quase com ternura, e que a água lambia com desvelo cadenciado, como um cão lambe uma ferida.... Precipitou-se e desarranjou a areia, com a força dos pés que nela se enterravam, e violentou o mar, que ripostava com salpicos que ela nem percebia e quando se acercou daquele corpo imóvel, acometeu-a um medo inaudito que poderia ter sido paralisante.

Tinha um fato preto vestido. Surfista. Assim vestido, tarde no Outubro, era uma evidência. Um rasgão na perna, outro no braço direito, o sangue dos cortes diluído no sal e a inconsciência da dor na inconsciência de tudo. Virou-o lenta mas firmemente, o rosto incólume, um mau pressentimento em relação ao braço, e.... respirava! De novo os pés na areia que o sol já quase conseguira secar, à força do retrocesso do mar, a energia concentrada no pedido de auxílio, a mão lançada para o fundo da bolsa e o número das emergências marcado instintivamente no telemóvel.

A espera, o arrependimento pelo desprezo outrora votado aos ponteiros do relógio, o tempo, esse inexorável inimigo, e o conforto apenas no calor do Sol – demasiado, para um dia de Outono – e no ritmo fraco sentido no pulso vigorosamente preso nas suas mãos, tensas e frias.

Uma pedrinha maior fez um ligeiro ruído, inaudível a não ser no silêncio de uma consciência em paz, e acordou-a do seu sono... Quando se apercebeu das graves perdas que sofrera durante o sono quase chorou. Mas os olhos castanhos que se abriram no hospital secaram-lhe as lágrimas. E o obrigado depois de recuperar a consciência. E o silêncio enquanto dormia o sono narcótico incutido pelo frasco pendurado no lado direito da cama. No braço direito, engessado, o número do telefone dela. Que tocaria...

No caminho para a casa de banho, espalhou mais pedrinhas e a areia contou ao soalho flutuante, curioso, tudo o que se tinha passado nesse dia tão singular. Na banheira, a água domada da cidade contornou-lhe o corpo nu e o sol despediu-se dela com o seu último raio, reflectido na água que a aquecia, num dia quente de Outono.

AMIZADE


Andas oculta nas sombras dos acontecimentos marcantes, humilde na dádiva, segura na presença. Afastas-te à minha passagem, libertando espaço para o gozo pleno das alegrias e para a ocultação inicial dos erros e tristezas. E observas com tudo menos com o olhar…

Mostras-me do sonho as fraquezas, da tristeza as transitoriedades, do amor as verdades. E sonhas, e choras e amas. Ainda assim…. Estás aí….

Imagino-te ampla, espaçosa nesse interior tão oferecido, de outra forma como acomodarias tão confortavelmente toda a minha complexidade, todos os meus fantasmas, todos os meus pontos de interrogação hiperactivos, os meus pontos de exclamação inflexíveis, os meus pontos finais inexistentes e as minhas intermináveis reticências?

Zango-me com a minha incapacidade de viver sem ti, com o peso que não denuncias no sorriso com que me acolhes nas madrugadas longas de incerteza, com o egoísmo que não ultrapasso e me faz sentir sempre que te dou de menos enquanto te recebo mais do que mereço.

Apraz-me consolar-te. Não porque te deseje as dores – sim, sei que te fazem crescer, sei que as sabes viver – mas porque nelas te sinto gente, te intuo as fragilidades e com a percepção da tua humanidade vivo melhor com o pior de mim.

Dás-te por entre as sombras sem reservas, mas com o pudor que o respeito de mim impõe. Observas para além do que quero mostrar, sentindo-me. Acorres ao chamamento quando as alegrias querem ser partilhadas. Irrompes sem convite quando as magoas são lâminas e me retalham a alma. Acompanhas-me na convalescença, partes enquanto durmo tranquilamente.

E regressas ao teu esconderijo em mim, ocupando sabiamente os vazios da minha vida, por entre os adeus das partidas e a euforia com os que de novo chegam. Tranquila, sempre, porque só tu, AMIGA, sabes estar nesse cantinho escondido, que é tanto, tanto de mim!

Para a «mana caçula»
Outubro 2009

14 janeiro 2010

ROUBO



Roubei-te 1 pedacinho de vida. Enquanto dormias, fui à gaveta da tua cómoda e estava lá este pedaço, cheio de sorrisos e de ternura. Não se faz… mas tinhas lá tantos! E este era tão bonito! Não resisti.
Meti-o no bolso, escondi-me no armário do corredor e carreguei no «Play». Os sorrisos libertaram-se numa confusão tremenda – alguns eram gargalhadas, sabias? – e fugiram-me por entre os dedos. Ainda apanhei alguns, mas eram muitos… deixei-os ir. E fui com eles. Levei a ternura também, não a podia deixar para trás.
Não eram meus, eu sei, mas aqueles olhos grandes eram tão vazios… fundos e redondos como o círculo no fim de um ponto de interrogação. Deixei-lhes alguns dos sorrisos e a maior parte da ternura. Emprestados, claro! Não eram meus, afinal….
Ainda assim sobravam bastantes e eu queria usá-los, vivê-los, perceber como conseguias ter tantos guardados num pedacinho de vida tão pequenino. Se calhar queria viver-te…
Mas tropecei naquelas mãos estendidas, muito plurais. Estavam frias, sabes? Por fora. E geladas por dentro. Tentei aquecê-las nas minhas. Em vão! Quando as soltei, relutante, os sorrisos que me restavam agitaram-se, rebelaram-se, colaram-se-lhes e aqueceram-nas com ternura. A tua ternura. Em tantas mãos, espalhada.
Ainda dormes, num sono tranquilo. Pensei que durante este ou outro sono conseguiria entrar no quarto e sem que te apercebesses fosse possível colocar o pedaço sonegado no seu lugar. Desculpa. Não pretendia estragá-lo, mas tarde percebi que os sorrisos não se pedem de volta e que a ternura não se empresta: são dádivas. Que te roubei.
Por isso… pé ante pé, eis-me perante a gaveta aberta – da tua cómoda – onde guardas tantos tesouros. Não para devolver o que não devia ter tirado, mas para te dar o que criaste sem saber: novas vidas, vidas velhas renascidas. E só com um pedacinho roubado da tua…

14 Janeiro de 2010

12 janeiro 2010

RASGA

Rasga. Cada esboço de cesariana, parido à revelia da alma. Olha para o papel: tão apenas suporte, mendigo de sentido, tão rabiscado, tão vazio afinal, que a gramática rege as frases mas os sentimentos enchem as palavras, transportam-nas do papel para a eternidade.
Por isso: Rasga. De tão bem conjugados os verbos soam cansados. Como se o parto sem dor, a anestesia, os adormecesse e os fizesse descuidar a sua força, o seu significado. Dormem os adjectivos, numa modorra correcta, sem a chama incendiária que se lhes exige, fraca publicidade a substantivos que de conteúdo mais não carregam que ecos difusos, indistintos.
Ouves-me? Rasga… Torce, distorce, adultera, sê!!!! Dobra, amarfanha, amarrota, exige!!!! Parte, quebra, dilacera: sente!!! Viola o branco imaculado do papel, que te agride, que te fustiga. Impõe-lhe sevícias, risca e escreve por cima, por baixo, não escrevas! Castiga tão perfeita alvura, tão promíscua oferta com minutos, horas, dias de indecisão. Deixa-o penar de angústia, de curiosidade. E ganha tempo para viver, para roubar os cheiros com que o perfumar às flores do jardim onde deste o primeiro beijo e para gravar fundo em ti as emoções que te arrancarão as lágrimas com que borrarás uma ou outra palavra, inundando-a de significado. Sem avareza, oferece-lhe alguns sorrisos, só alguns dos muitos que se espera que esboces e ilumina-os com uma ou outra gargalhada sonora, vibrante, nascida de ventre puro de alegria sem sombra.
E quando achares que já sabes vida, e te atreveres a saciar a curiosidade semeada… Rasga!!! Ou risca. E diz-lhe -ao papel, ele está curioso - não! Ainda não… Falta o erro, o excesso. A desilusão, o desvario. O êxtase, o delírio. E depois de tudo isso, as paixões e a Paixão. Pelos outros, plurais de preferência, mal partilhadas, saboreadas e desventuradas. Por ti – algum dia? – no momento da descoberta da tua imperfeição incontornável, da tua impermanência.
Rasga horizontes. Rasga preconceitos. Rasga limites. Milita na contradição, na contravenção, na negação. Provoca a rejeição, a crítica, a aversão até. Exclui-te, faz-te excluir até ao ponto da solidão. O amargo não deixa de ser um sabor. Obriga-te a experimentá-lo e reprime o esgar. Algema-te ao lado negativo da vida. Mas não deites fora a chave… Procura-a no dia em que intuíres a tristeza prenha de oportunidade, de esperança.
No momento – nesse momento improvável – em que sentires que é a hora, desafia o branco tão aparentemente neutro e rasga-te. Por sobre uma resma de papel verte as águas rebentadas. Sem epidural e num parto de dores, de amores, gera vidas em verso, decide-lhes o destino em prosa, recria-te num mundo por ti criado, exclusivo, construído por frases sublinhadas de esboços antigos, alguns rabiscados, outros amarrotados, tantos rasgados. …
Rasga. Amarrota. Amarfanha. Risca. Dobra e esquece. Mas, pelo sim pelo não, arranja uma gaveta de vida vivida pronta para receber os rascunhos enjeitados. Quem sabe um dia ganham sentido…

06 Outubro 2009

CAMINHOS


É por aí, podes ir!
Não divisas as pegadas?
Não vês o solo rasgado
Onde a chuva foi cair
Entre pedras alinhadas?
É obrigatório, o sentido!

Anda vai!No fundo da rua,
Depois da esquina aberta
Uma previsibilidade serena
Anseia por fazer-se tua
Numa página de vida escrita
Por uma pluma, uma doce pena.

Deixa-me ir - não me impeças,
Não te sigo no sentimento -
Por entre flores sem estrada
Tropeçando em raizes expostas,
Ansiando sempre pelo momento
De viver a minha alma libertada.

Janeiro 2010

ESQUINAS

Mão estendida, na esquina. Todos passam sem o ver. Como se os raios do sol abrasador encandeassem selectivamente ou como se as gotas da chuva se unissem em cortina para o esconder. Ali, naquela, entre duas ruas perpendiculares, onde todos passamos, com paralelepípedos sujos do suor que se nos evapora nas nossas vidas corridas, cobertos de lama de pó de escape e de lágrimas não vertidas de multidões entorpecidas. Os ombros cederam há muito à gravidade. Às gravidades: a da maçã e a da situação. Descaído, o olhar imita-os. Tombada a alma supera-os. A moeda que cai ocasionalmente não faz eco, padece de solidão. E o olhar de genuína preocupação – mais esporádico ainda – não encontra interlocutor: é assim a miséria, do corpo, do espírito. Um gesto de carinho desarma o alheamento, e deixa uma semente doce. Que não brota.

Enche o peito, na oferta. Mão na anca, andar seguro. Lábios escarlate, que chocam mais do que apelam. Deixa-se de ver a saia quase inexistente quando se aproxima do carro e, vestida de rotinas, se debruça sobre o vidro que se abre, o peito em promoção, amostra grátis. Noutra esquina qualquer negoceia-se e de si vende mais do que o que lhe compram, tão mais caro do que o que se paga…. Objecto que se tornou, procura-se desesperadamente depois de cada utilização. Para com indolência se resignar e em várias despedidas diárias ver partir pedaços de si… Na mão, as moedas não ecoam. Recebe em notas, não fazem barulho. Sob o tecto confortável, a chuva não molha nem oculta, o sol não fere a vista alheia e, para o corpo, alimento não falta. Mas as linhas cruzam-se na mesma posição geométrica e a encruzilhada repete-se, mostrando um interior de terra ressequida, por lavrar, estéril, numa incomensurável miséria de ser que só o álcool consegue afastar. Por pouco tempo. Até ao fim do tempo.

O brilho do metal fere a obscuridade. Ali, onde duas ruelas se cruzam, numa esquina que mal merece o epíteto, oculta pelos arbustos minguados entrelaçados de lixo, a luz envergonha-se e ilumina menos. O ar sufoca de tristeza e adensa-se do fumo e suores de estimação. Em redor há vida, há gente, há mundo, mas tudo se lhe resume ao brilho do metal no momento que antecede o movimento rotineiro de violar a veia, hoje uma diferente, tantas outras se recusam já, exangues. Todo um dia, tantas horas, minutos divididos a pensar nos segundos em falta para aquele momento, para o tempo de desligar sinapses, de se abandonar, de se anular. Hoje, um reflexo extra, a seringa ganha vida, solta-se da veia que forçou e num lampejo ténue, mostra luz. Como se celebrasse a vida que roubou, numa dessas esquinas diferentes, onde duas linhas que se intersectam não abrem, na perpendicular, duas escolhas. Apenas apontam, como duas inexoráveis setas, para um destino que não se contrariou.

Com crueldade inesperada o espelho devolveu-lhe uma estranha nessa manhã, quase tarde. Não se reconheceu nas olheiras, no desalinho do cabelo, tingido nas raízes de prata muito pouco preciosa, na pele que nada reflectia, reduzida à função de invólucro. A água não lhe percorreu o corpo com o desvelo costumeiro, desfazendo-se em gotas que optavam por cair longe, após uma passagem fugaz de asco. Como se preferissem o esgoto, seu destino conhecido. Em greve, o corpo declarou falência e o pequeno-almoço não resistiu ao vómito. Desfaleceu.
Despertou fora de horas e de vontade. Escondida numa roupa discreta saiu para a rua, frágil, sem a armadura da exposição física. Desceu a avenida e levou a mão ao bolso, em busca de uma moeda, que caiu, surda, naquela mão perpetuamente estendida. Afastava-se já quando se apercebeu. No alto dos saltos teria prosseguido. Mas a ausência de som… nem um eco do obrigado suposto, nem uma sombra de voz.
As luzes descaradas feriam-lhe os olhos, e as pálpebras, normalmente baixas, acocoravam-se ainda mais sobre os olhos. O ruído metálico dos talheres era uma lembrança distante nos tímpanos entorpecidos do zoar dos carros. Misturados com as vozes - «Sai um bitoque para a mesa noveeeeeeee!!!!!» - causavam-lhe náuseas. E aquele olhar pousado em si: doía. A tigela fumegante de sopa mal repousou na toalha limpa, o arroz de pato recordou-lhe outras refeições e a sobremesa forçou as memórias dos almoços de Domingo, com mesa posta, depois da missa. Com sorrisos da filha transformados num abraço comprido, quando depois da refeição viam televisão tarde fora, nos Invernos de Vida.
Por onde andaria? Que som faria o seu passar, que cheiro deixaria numa mão que se lhe estendesse, de pedinte? Teria no rosto a expressão ferida, fotocópia da fisionomia que o observava enquanto comia? Foi-se, junto com a mãe num abandono previsto, jamais esperado. E na esquina a que a vida o conduziu, no meio dos rostos anónimos, quando ousa levantar o olhar, são os seus olhos que procura, com medo de os encontrar um dia. Os que o fitam estão perdidos. Buscam rumo.
A avenida tornou-se o itinerário habitual no caminho para a vida. E a refeição – normalmente um lanche – substituiu a moeda. E o olhar, devoto ao empedrado horas a fio, ergue-se agora depois das duas, alimentado de dignidade. Ela viu para além das roupas andrajosas. Ele viu para além do exposto. As setas perdem assertividade e a perpendicular redesenha-se, pouco a pouco, sob a forma de oportunidade.
Uma tarde – já uma de muitas – num desejo remoído de retribuição, ousou o convite. Surpreendido com a resposta, de bolsos vazios, ofereceu-lhe a sua história, de dor de saudade da filha e de eterna esperança de a reencontrar, entre passos lentos pela cidade que sobreviveu a um terramoto em tempos idos e se recriou. Dia a dia, rua a rua, pedra a pedra, foram construindo uma dignidade, escolhendo um caminho – quem julga o seu reflexo?
À tardinha aquela viela impôs-se, a si e à sua obscuridade mal afamada. Obras obrigaram ao desvio. Unidos numa comunhão invulgar, prosseguiram as partilhas, cada vez mais descontraidamente, cabeças erguidas, fitando horizontes. Distraída por um pássaro que levantou voo, ela, que se deixara ficar ligeiramente para trás, tropeçou, perto do corte abrupto de uma perpendicular rendilhada de arbustos e lixo. Ele ajudou-a a erguer-se, solícito e seguiu caminho, contornando a esquina, com a sua esperança pela mão. Ela viu, de relance, que tropeçara num pé que exagerara o seu direito de ocupar o espaço. E apertou a mão que a amparava com mais força, num agradecimento mudo.
Não viu, nenhum deles, o brilho metálico da agulha tombada no chão. Não perceberam, no seu passo rápido de transeunte enrolado numa vida que já se tem, que o pé pertencia ao corpo de uma jovem de quem a vida acabara de se libertar. Mesmo ali, naquele ângulo recto onde se extinguiram para ela todas as perpendiculares. Não viu, ele, nos olhos abertos no derradeiro êxtase, o fim da busca de tantos anos, e a condenação a uma eterna saudade.

Outubro de 2009

ATÉ LOGO

Diz-me até logo. Um logo sem tempo. Como quem diz «era uma vez». Abre-me reticências e empurra-me, que não tenho coragem de me lançar.
Fica por perto. Um perto curto ou longo. Sim, tu percebes, aí: esse perto. O suficiente para te sentir respirar no meu pescoço, mesmo quando estendo a mão e não te toco, porque os quilómetros não deixam. Ou mesmo aí, nesse ermo que posso ver, montanha escarpada rodeada de fosso de crocodilos e ponte levadiça, para onde te retiras sem avisar. Perto só na minha medida de sentir.
Até logo, sem certezas. Por antítese, sem dúvidas. Por definição, sem questões. Com ponteiros de relógios que se cruzam ao contrário, para baralhar o tempo. Sem medo de um adeus, sem campo para retalhar. Todo o espaço é mar, é céu, fluido e leve, solto e livre. Nada está preso, mas tudo tem o seu lugar….
Olho para as reticências em aberto. Tão mais fácil uma exclamação, um ponto final que fosse. Três pontinhos, três buraquinhos numa parede branca e interminável. Espreito pelo primeiro: tudo negro. Nada revela. O segundo devolve-me uma luz intensa, que encandeia. O terceiro guarda os seus segredos sob uma bruma densa, onde nem as sombras sobrevivem. Rapidamente me arrependo da curiosidade: nada revela daquilo que ainda não se construiu.
Três pontinhos… três hipóteses, melhor que bifurcação. Faz-me à vida de empurrão. Queria ficar aqui, no colo doce do conforto, na segurança do que já foi. Mas… por ter sido, está vazio, oco de oportunidade. Fecho os olhos, abro os braços, sinto o vento, na resistência de um corpo sem direito a vontade, a caminho da gigantesca debulhadora da existência. Em torno de um eixo, no turbilhão, mais uma espiga de tantas outras, revelarei meus grãos, libertarei a palha, à força de encontrões e reviravoltas.
Até Logo: digo-te eu. Corto amarras que só eu vejo, liberto-te das correntes que não tilintam. Numa caixa, com laço de seda, faço-te a derradeira oferta. Não de mim, que já sou tua. Abre a caixa, são para ti: três magníficas reticências. E um beijo... Guardo só as lágrimas. Agora vai! Faz-te à vida!
Nesse dia, sem tempo, num campo lavrado e adubado, cairão duas sementes. Sem palha, sem estorvos. Nesse dia, mais que perto, apertados na terra fértil, partilharemos a água e daremos as mãos em busca da luz.
Assentaremos em solo firme o nosso «Era uma Vez».


Novembro 2009

DACHAU OLHANDO O CÉU






















Branco eterno. Ou uma folha
Sempre em branco, para escrever
Numa longa e negra linha
Uma história a não esquecer.

E um corpo magro, a desistir,
Ossos expondo uma derrota
De quem não pôde prosseguir.

Branco imóvel na direcção,
Erguido ao céu, posto ao alto,
Todo ele baço de devoção:
Pleno tão só de desalento.

E a pele em pregas, a descair
Vencida já pela gravidade,
A mesma que te impede de ir…

Branco anónimo, que ficaria
Por entre as brumas da multidão
Não fosse o acaso -naquele dia-
Cruzá-lo com lente de compaixão.

Mãos rendidas, não mais erguidas
Braços largados ao seu destino
Depois da morte não há feridas…

Branco perdido, no seu lugar
Naquela sala – noutra qualquer,
Ainda assim, me vens tocar
Para o meu olhar não te perder.

No teu momento, no teu render,
Feito do Mundo em fotografia,
Marcas cruel, com ferro a arder!

Branco de olhos, os teus cansados,
De ver sem enganar o terror:
Negros no centro, de dor pintados,
Imagem perpétua de puro horror.

E nesse branco, do teu olhar
Condensas, da história, a loucura
Que só os homens sabem criar.

Dezembro 2009

10 janeiro 2010

Estrelas ocultas

Faz-te a noite um carrossel
A ti, que passas e segues
Na senda do teu horizonte.
Não te enredas no cordel,
Não te arrebatam as luzes
Não te desafia a noite?...

Faz-te a noite pura magia
E tu, que a vida passeia
Por sentidos despertados,
Já és toda fotografia
Já lançaste a tua teia:
Deste à noite significados...

09-01-2010
Para a Mariam

09 janeiro 2010

Domingo, Ontem e Amanhã

Amarrotou a folha, mão crispada na única manifestação da velha raiva que sempre se permitiu. As veias salientes nas mãos longas, um pouco manchadas de idade, os dedos finos, só ossos e tendões dominando um simples pedaço de papel. Inocente. Tirou os óculos, esfregou os olhos cansados, engoliu em seco o fel de uma tristeza quase gasta. Olhou em redor, com o olhar vencido pela miopia, acutilante na busca, na eterna atitude crítica perante tudo, perante todos. Observava por defeito, para absorver, para criar. Agora, também para viver mais do que a sua vida.
Aos Domingos, o sítio do costume. Os jornais do dia, cedinho pela manhã, saboreados com café, como quem molha a torrada no líquido quente, primeiros alimentos da mente (a mais ávida) e do corpo. A análise comparativa dos conteúdos (incontornável, como um sentido obrigatório) misturada com a ira perante a banalização da forma, a superficialidade das abordagens, os erros ortográficos e gramaticais.
A cadeira já se lhe afeiçoou, assim como a mesa estrategicamente escolhida, no canto mais elevado e discreto, com vista para a sala bem decorada. Os empregados mimam-no com sorrisos, antecipam-lhe os pedidos - «mais um café? Já pode sair a torrada?» - sente-se em casa. O assento é poltrona, onde se instala e observa pedaços de existências alheias como se visse televisão depois do jantar. Bloco de notas a jeito – não vá algum episódio ser digno de nota – e o cenário está montado para a sua manhã dominical.
Depois dos madrugadores do pequeno-almoço, raros, normalmente sozinhos – rápidos e intensos, como os anúncios - surgem a meio da manhã os primeiros casais, transpirando no toque permanente a doçura lânguida de quem abandonou os lençóis ainda quentes de partilha. Novos, velhos, contam o tempo em segundos ou horas, sorvem-no em tragos ou bebericam-no com a sensação de que não há pressa. Juntos. A dois. Numa manhã preguiçosa de Domingo.
Gargalhadas e altercações estridentes denunciam as primeiras crianças. Irreverentes, cativantes, erupções de energia e alegria pura em contraste com o ar ensonado dos pais, tentando sintonizar aquela estação – onde está o canal? – ou procurando desesperadamente o interruptor do som, na ilusão de aliviar a agressão dos decibéis a uma noite mal dormida. Nem notam nas olheiras o brilho que acrescentam ao sorriso que nasce após cada repreensão com semblante sério:
- Shiuuuu!!! Mais baixinho! Olha: a mamã trouxe-te os lápis de cor. Faz um desenho para mostrar ao Pai. Um desenho bonito!
Um olhar cúmplice, nos dois segundos de silêncio que os lápis conquistam, para logo se entregarem à supervisão da prole. Juntos. Numa refeição conturbada, barulhenta, feliz aos bocadinhos.
Entre o bloco e a alma, vão ficando notas. Para misturar com tantas outras e permitir à mente – a sua dona – formular teorias, matrizes, padrões... explicar e encontrar razões. Ser incompreendido não significa não ser genial. Só os fracos de espírito necessitam do reconhecimento alheio. Os dotados de inteligência acima da média, «iluminados pela erudição» movem-se, por definição nas sombras, longe das luzes da ribalta. O mérito não é garantia de recompensa. O que não deixa de ser uma pena...
Volta e meia, a blindagem racha e a fantasia solta-se. Imagina todos os manuscritos guardados na gaveta transformados em livros de capa dura, com o título impresso a letras douradas, em lugar de destaque nas bibliotecas de ilustres que o citam, que o recomendam, que o convidam para escrever crónicas semanais em jornais reputados, para tecer comentários em directo, na televisão. Traduzido em várias línguas, teria que viajar, dar conferências, palestras, correr mundo em passos largos, à medida do seu valor, feito de inteligência, muito estudo, espírito crítico de visionário. Abre a gaveta, passa a mão pelos seus tesouros, repara os estragos e consola-se com um livro, na estante - que é muito mais de tantos outros - publicado há muito, nascido da tese de doutoramento. Há mais que um, na verdade. Mais uns quantos guardados num caixote empoeirado, restos de um mau marketing, culpa de uma editora medíocre, que não o soube divulgar. Azar.
Naquele dia já eram horas. De deixar o pequeno escritório onde apenas não dormia e os sonhos que lá guardava. Havia uma turma para enfrentar, cinquenta rostos, maioritariamente amorfos, incapazes de perceber a universidade como uma oportunidade, um campo lavrado de liberdade para as ideias, para a crítica, para a dúvida, num caminho longo para o conhecimento. Salvavam-se dois ou três indivíduos, pela inteligência ou pela irreverência. Era neles que se refugiava, era a eles que se dirigia na esperança de transmitir mais do que o que o conteúdo dos livros – dos outros, sempre dos outros.
Há dias assim. De cadeiras vazias, de ecos sem substância. Na segunda fila, competia com mensagens recebidas e enviadas num telemóvel. Na sexta, com qualquer facto misterioso que manteve as duas alunas muito aplicadas na conversa sobre o mesmo. Lá ao fundo, na última, o sono venceu o aluno. E o professor. Saiu da sala, sem alicerces, desmoronado, deixando para trás, enquanto percorria o corredor vazio, pedaços do cimento das suas fundações mais profundas.
A porta do auditório abriu-se e de rompante um magote de jovens bloqueou-lhe a passagem. Da porta do Grande auditório jorrou uma maré de gente, que inundou todo o espaço livre no exterior. Reconheceu as ausências da sua sala. Quase não lhes identificou as expressões. Afogueados, com o olhar incendiado de uma paixão que lhes desconhecia, os seus alunos, entre tantos outros, comentavam em coros desafinados o que alguém acabara de dizer, com palavras como «brilhante», «fabuloso», «inspirador» no fim das frases, em jeito de refrão.
Sentiu-se num caleidoscópio de vida, que o transportou para os tempos em que também ele se deixava fascinar por um orador brilhante, em que a inocência era ainda uma cortina opaca à luz insinuante do desalento. Longas noites de conversa – tantas vezes acesas discussões – sobre um filme que se viu, um livro que se leu, a situação social ou político-económica do país, do mundo. Invariavelmente com o seu companheiro de turma, do quarto que dividiam, dos sonhos que se alinhavam no mesmo horizonte: mudar o mundo com a força da palavra. Companheiros até de utopia..... Mais tarde, juntou-se-lhes um terceiro elemento. E as conversas ganharam fulgor, acrescentavam-se horas às noites e as ideias chocavam num deslumbramento tripartido. A vida era perfeita. Tudo lhes era ainda possível.
Acordou de si num silêncio sepulcral. As portas abertas ofereciam-lhe o auditório num cenário impossível de jovens ordeiros, silenciosos, de olhar expectante fixo no local onde o orador se preparava para retomar a palestra após o breve intervalo. Como o invejou... Qual o assunto? Qual a perspectiva revolucionária, o segredo? Um dom?.. Entrou, e sentou-se na última fila, numa cadeira miraculosamente vazia no anfiteatro apinhado. Aguardou o reinício da sessão com ansiedade e dispôs-se a tentar perceber a génese da euforia, do respeito - até do silêncio - tão incaracterísticos na sua sala de aula.
Se a janela estivesse aberta e uma simples brisa se insinuasse pela cadeira em que se encontrava, tê-lo ia arrastado para a rua, reduzido que ficou a pó. Moído pela inveja, por uma raiva agora ampliada mil vezes. Não bastava lê-lo em todas as revistas da especialidade e nos jornais, vê-lo citado nos trabalhos que tinha que corrigir, tropeçar em pilhas de livros com o seu rosto estampado no verso nos expositores de todas as boas livrarias, saber das presenças assíduas em conferências internacionais, na televisão... O Professor Doutor! O venerado Professor Doutor Marques da Silva. Ali! Esvaziou-lhe a sala, trucidou-lhe a alma. E a sanidade, no momento em que o avistou no seu cantinho improvável e, no final da palestra, se congratulou publicamente pela presença de um colega brilhante e amigo de longa data. Amigo...
Cumprimentou-o mecanicamente, correspondeu ao abraço de outros tempos.
– Então? Há quantos anos?.... Andas desaparecido, nunca mais deste notícias. Que bela surpresa ver-te na audiência. Fantástico! Dá cá um abraço, homem!
Entre a conversa de circunstância aceitou até um livro autografado, motivo da presença e da palestra do Professor Doutor na sua Universidade, na única casa que tinha para a vida que não vivia. «Para o meu companheiro de quarto, de aventuras e de ideais – memórias gravadas numa amizade que não perece com a distância nem com o tempo. Forte abraço, Luís.». Assinou só o nome de quando ambos nada eram. Teve essa comiseração para com a sua insignificância. Ou pretendeu feri-lo?...
Nesse dia, divorciou-se da paixão com que ensinava, com que buscava nos alunos com potencial os filhos que não teve e neles investia toda a sua capacidade de se dar, da única forma que conhecia, partilhando o que sabia, esse tesouro que lhe custara tudo o resto. Deixou-se arrastar para a dimensão dos que trocam mensagens, comentam telenovelas ou dormitam discretamente nas suas aulas. Perdeu a capacidade de se entusiasmar com uma argumentação ousada e pertinente num teste, de se deixar impressionar por um aluno genial, daqueles que só aparecem de vez em quando. Tornou-se um espectador da vida, certo que as suas palavras não mudariam o rumo de uma mosca, quanto mais do mundo. O livro autografado ganhou um lugar na estante, ao lado do seu. Por pura ironia.
Aos Domingos, tenta viver. Com o pretexto de recolher elementos para o livro que jamais conseguirá arrancar de entre infindáveis camadas de destroços, sem alicerces, consumidos num fogo permanente de frustração e inveja. Podia ter sido ele. Devia ter sido ele. Entre rabiscos e anotações, observa e ocasionalmente consegue esconder-se da racionalidade tirana, cruel.
O casal da semana passada regressou. Vêm zangados: o olhar dela é todo da revista que folheia sem ler e as mãos dele não largam o jornal. A menina dos olhos verdes, com os totós a condizer com o sorriso maroto entrou a correr, endiabrada, seguida pela mãe, numa perseguição divertida, que não poupa o pai embevecido. Vieram cedo, hoje. Dois estudantes -num pequeno-almoço muito tardio - tentam acabar um trabalho, numa luta contra o barulho dos gémeos desdentados da mesa ao lado, que disputam a playstation em birras intermináveis, que já só merecem o desprezo dos pais. Ali, na sua cadeira da última fila, onde poucos o percebem, rouba pedaços de vida sem que ninguém dê por nada. Ninguém... é tudo o que tem, mais tudo o que sabe.
Quase todos os Domingos há algo que dá verdadeiro sentido à folha de papel. Um casalinho particularmente transparente na forma como se olha, com paixão de Primavera. Um casal de Verão, filhos a tiracolo, um todo partilhado, pleno. Um Outono que não apagou sentimentos e que une duas mãos enrugadas num gesto de carinho sem tempo.
A senhora grisalha empurrou a cadeira de rodas até à mesa. Assegurou-se que o marido estava confortável, passou-lhe a mão pela prata do cabelo, apesar do olhar ausente e do tremor permanente no corpo abandonado. Quando a refeição chegou, alimentou-o como se de um bebé se tratasse, com desvelo, não obtendo, como reacção, mais do que um abrir e fechar de boca, trémulo, automático. Mas ainda assim insistindo em encontrá-lo algures, longe na sua demência. Um Inverno chuvoso de amor. Que nesse dia despertou o impulso, e como tantas outras vezes, fez uso da folha para além dos rabiscos: «Sabes, quero dizer-te... há já tanto tempo! Quero-te! Desde sempre, desde o princípio do nosso tempo. Amo-te...» E mal escreve a palavra, a mão solta a caneta, agride o papel, no movimento de sempre, na impotência do «para sempre». Mais um pedaço amarrotado de amor escondido, pontaria certeira, cesto perfeito no caixote do lixo. Mecanizado numa tristeza com excesso de uso.
Mais um Domingo e o ritual estava próximo do fim. A velhinha terminava a sobremesa, enquanto brincava com a menina dos olhos verdes, que não entendia porque é que o senhor na cadeira de rodas não respondia às muitas perguntas que lhe fazia:
- Mas ele gastou as palavras todas? Eu empresto-lhe algumas das minhas!
- Não incomodes a senhora... – avisava a mãe, apenas por cortesia, percebendo o sorriso que a atenção da filha emprestava à senhora que a idade ainda não havia vencido totalmente.
A sala cheirava a café e o ruído dos talheres amenizava-se. A tarde de sol convidava a um passeio ao ar livre e os presentes não se fariam rogados. O espaço sem clientes implicava o regresso do seu próprio vazio. Fazia-se tempo de o abandonar, depois de um último café. Mas a porta abriu-se e uma agitação invulgar estilhaçou a rotina. Os empregados, solícitos, indicaram uma mesa no lado oposto da sala – a melhor - onde apenas os divisava de costas. Maldita miopia!
Timidamente, um empregado pediu um autógrafo. A velhinha devota deixou o marido à mercê da pequenita endiabrada, para regressar sorridente e passar a folha rabiscada em frente do olhar senil, que não reagiu, como sempre. Algumas interrupções depois, o casal pôde finalmente saborear a refeição em paz, apesar da hora tardia. A normalidade acalmou-lhe a curiosidade e reforçou a ideia recorrente de que não se pode ser figura pública e estar descansado em lado nenhum. De onde estava não lhes podia observar as expressões, os gestos, não havia pedaços de quotidiano para roubar. Foi ficando, porque todos se deixaram ficar. Retomou a leitura de um jornal um pouco negligenciado nessa manhã, quase agradecendo aquele inesperado prolongamento do seu Domingo.
Absorto, não se apercebeu da aproximação:
- Inacreditável! Tantos anos e agora não há fome que não dê em fartura! Estás bom companheiro?
Estremeceu.
- Olá, como estás?
Sentiu-se morrer.
A voz: o tempo não lhe sorveu a doçura. No rosto, suaves linhas marcam histórias, sem lhe roubar a beleza, incólume no conjunto harmonioso. Passou-lhe com decência pelo corpo firme, o tempo. Só não lhe encontrou o olhar voluntarioso, fogoso, todo ele entrega, todo ele dádiva e alegria. Aquele, o das longas noites de utopia tripartida. Perdido ou guardado?
Amo-te! Pensou. Amo-te! Quis responder. Amo-te! Gritou no silêncio aberto pelos seus lábios, que não lhe obedecem hoje, como não lhe obedeceram no tempo que era seu. Amo-te! Disseram os seus olhos. Amo-te! Reflectiram as lágrimas que nunca conseguiu chorar.
- Dá cá um abraço, companheiro!
Deu.
- Então, não dizes nada? Lembras-te da Leonor, não lembras?
A Leonor. Que ignorou na ânsia de ser genial. Que negligenciou por ser uma distracção para o espírito. Que um dia lhe disse «Amo-te» numa folha de papel antes de viajar para longe, em busca de um doutoramento. De quem teve notícias pelo Luís, que teve ideia igual. Até deixar cair o contacto, num fim voluntário ao trio das utopias. E afinal... escondida na inveja pelo reconhecimento académico e intelectual, a tristeza gasta do que se sabe sem se perceber bem como. A Leonor do Luís...
Buscou-lhe o olhar, bem fundo, até o encontrar. Apertou a mão amarfanhando para sempre a folha de papel e disse-lhe:
- Amo-te. Ontem e amanhã. Desde o início do nosso tempo, quando te juntaste a nós, cheirando a sardas sobre pele branca e ao perfume do teu cabelo ruivo. Amo-te. Num amor que só sabe lamentar o que poderia ter sido e aspirar ao que poderá vir a ser. Que foge do presente, porque foge de quem o sente. Um diamante escondido no leito de rocha negra, estéril e impenetrável, que não consigo deixar de ser. Amo-te. Ontem e para sempre. Perdoa-me, mas nunca te saberei amar hoje...
E abandonou o restaurante, em passos rápidos, sob os olhares expectantes de todos quantos acreditaram verdadeiramente que ele ia dizer qualquer coisa à senhora ruiva, quando a olhou nos olhos por momentos infinitos, sem soltar um único som.
Deixando ao Professor Doutor Luís Marques da Silva uma profunda dúvida e preocupação genuína sobre o estado mental do seu amigo, do companheiro de outrora.
E à Leonor, à sua Leonor, um vazio preenchido e um sorriso ambíguo no rosto.
Não houve Domingo seguinte. Não regressou. Só os empregados deram pela sua falta. Ou seria pela falta da gorjeta generosa do costume?

06 janeiro 2010

ESCREVE-ME UMA LÁGRIMA

Escreve-me uma lágrima
Com pena de magia e sonho.
Uma gota de dor em rima,
Água e sal – faz um embrulho!
Que tenho uma mágoa despida
Sovada pela mão da eternidade
Que teima em fazer-me ferida:
Veste-a toda só de saudade!

Ou de uma lágrima oferecida,
Que seja tua para toda a vida!
A minha, que a tua é perdida...

Se quiseres, chora-a por mim
Na luz do sol, no brilho do luar.
Pudera eu chorar-te assim
Cabelo ao vento, a soluçar.
Quem no sorriso sabe sentir
A tua falta, a dor que trago?
Saberá uma lágrima exprimir
Como te sinto, no meu abrigo?

Quero uma lágrima oferecida,
Que seja tua para toda a vida!
A minha, que a tua é perdida...

Escreve-me uma lágrima.
Jamais te saberei chorar...
Água em gota - só uma!!!
Preciso dela, para te mostrar
-Para além do eco de cada dia -
Aquele recanto: o teu lugar,
No meu arquivo de nostalgia
Onde visito o teu olhar.

Para sempre tua, na minha vida,
Será aquela lágrima – oferecida.
Choro-a sorrindo, por saber-te perdida...

Para a Mãe e Mãe da Mãe, (para) sempre na memória

Balões

Flutua. Numa ausência de gravidade. Sem força na ausência de forças. De olhos fechados, corpo nú, relevo numa superfície horizontal, abandonado de si, partilhado num plural que o faz realidade. Lábios entreabertos, enfeitados de sons que tudo devem ao sentido, tomados pela vitória dos sentidos. Plenos de fúria doce, transbordando desejo. Interminável arrepio, sem rumo previsível, ora lhe percorre o corpo, ora lhe desflora a alma. Enquanto flutua…
Foi num dia qualquer. Espartilhado de rotação. Denso de gente, da que se quer, da que se dispensa. Um dia de teia, como todos os outros, já resignada à certeza de que, como a mosca, quanto mais se debater, mais aquela vibrará, alertando as aranhas da vida para a presença de presa. Um dia nem frio nem quente, nem chuvoso nem solarengo, grave de quotidiano, subia uma escada, certa do destino, recordando a lição do manual dos dias normais, decorada de véspera. Tão absorta que quase não via…
O frio da parede branca relembra-lhe que o seu corpo tem existência física - embora pareça não ter peso - e o curso das gotas de suor que ganham a liberdade é interrompido pelas mãos que o percorrem, que dele fazem música, transformado que está em instrumento, de cordas tensas, que vibram mal se afloram. O calor que se lhe cola por trás aniquila a parede e o seu frio, num trópico de inconsciência do mundo, de imersão total nos momentos, nos estímulos.
A buzina daquele carro fazia parte dos Imprevistos, último capítulo do Grande Manual. Que não havia lido. Quem lê os últimos capítulos afinal? Desconcentrada, libertou o olhar na fracção de segundos em que o objecto passava. E num acto de rebeldia insólito, deitou-lhe a mão, cobrindo-o de curiosidade.
Cansadas, as cordas fazem-se fios de lã, enrolados em novelo de ternura, indistintos de posse, de dono. O pintor não conseguiria pintar os corpos abandonados sem os mutilar de sentido. O escritor não teria como descrever as palavras não pronunciadas. O escultor não ousaria tocar a obra de arte (nem com o mais delicado cinzel). O erudito não teria imaginação para criar a definição que ainda está em falta em todos os dicionários.
Segurou o fio, sem considerar largá-lo, apesar de se sentir elevar no ar. Com as duas mãos, crispadas de medo. Trepou o suficiente para nele enrolar um pé, como fazem os trapezistas. Olhou para baixo, e a nova perspectiva devolveu-lhe um aglomerado de figuras geométricas, contidas, desenhadas para conter gente fisicamente assimétrica, métrica no ser. Içou-se, a custo, até à superfície arredondada que feria o ar à sua passagem, instalou-se no topo bojudo e levantou a âncora do olhar. Havia mais balões no horizonte. Vários… Tantos!!! Quase um mundo paralelo, outra dimensão, um potencial universo, visível a olho nú, sem grilhões na percepção. Contudo… Não viu vivalma! Ninguém lhes teria deitado a mão?
O abraço condensa tudo o que foi, embrulho de papel fino com laço de seda. Fogo: solta-te, lança-te sobre o mar, incendeia-o, liberta-o também em gotículas de êxtase e deixa-o inundar a terra ressequida de prazer, de alegria. Que a plenitude existe, em balões coloridos, redondos – aos milhares num plano paralelo – onde se pode flutuar dentro de si próprio, assim que se consegue deitar a mão à coragem. Aos pedaços, como rebuçados, que a Gravidade cria a falta, o contraste oferece o valor. Fica um beijo por desembrulhar. Fica sempre um abraço por apertar, um sorriso por iluminar. Fica a eterna vontade flutuar.

Fazes-te do Vento


















Pluma que és
Fazes-te do Vento.
Tirano, senhor,
De revés em revés,
Testa-te o alento
Lança-te à dor.

Feroz ventania,
Tenta-te quebrar:
E tu, pena ágil
Giras, rodopias
Não sabes parar!
Doce pluma frágil…

Flexível e solta
Deixas-te levar
-Como resistir? -
Até que perceba
Que te pode vergar,
Mas jamais destruir!

03 janeiro 2010

TENS-ME


Tens-me. Onde nem imaginas. Em desejos que não ousarás formular, em impulsos que não poderás justificar, em certezas que não racionalizarás. Obrigaste-me a esgotar um conceito e a castrar os outros amores, os amores dos outros, do direito a pronunciar a palavra que os define. Terão que se contentar com sinónimos, ou sentir diferente. Da entrega, o conteúdo foi usurpado e – acredita - embora belo e amplo, peca por curto. É poucochinho.
Eis-me, toda eu tua. E nem por isso vazia de mim, porque me tornaste demasiado simples o altruísmo, estranhamente doce a abnegação, absolutamente necessária a partilha. Como se cada dádiva regressasse melhorada, reciclada, completa. Como se tudo afinal fosse tão simples como isso. Fácil. Subitamente os amores são mais fortes, as alegrias mais intensas, as dores mais suportáveis e os outros… mais vulneráveis, mais humanos. Mais bonitos.
Sentes-me, antes ainda de me compreenderes, de me tocares, de te aperceberes de todas as coisas que partilharemos. Antes de tudo aquilo que me deixares gravar na tua consciência, a título de ensinamento, de todas as mágoas que te causarei, com desalento, de todas as fúrias e raivas construídas na revolta, a seu tempo. Porque me dei sem pedir licença e tu não saberás como me rejeitar, nem onde me encontrar para me expulsar: nos intervalos de cada inspiração, na fracção de segundo em que pestanejas, na incapacidade de controlar um espirro, em cada reflexo inato, nesse inconsciente a que não se pode aceder.
Tens-me. Para além da tua vontade. Para além até da minha, porque os conceitos são implacáveis com quem se lhes apropria do conteúdo. E sublinharei os erros para que sobre eles te construas, destacarei os obstáculos para que os derrubes ou os contornes, partilharei as lágrimas que não souberes secar sozinha. Ter-me-ás em cada escolha, só para me certificar que escolhes, e que aceitas as consequências das decisões tão tuas. Elevar-me-ei até aos teus sonhos realizados para te sentir a felicidade e suavizarei a queda, quando algum se esvaziar. Quero estar em ti em cada êxtase de amor, porque sou feliz contigo, não através de ti. E em cada adeus sofrido, só para que tenhas a certeza de que eu não te abandonarei jamais.
Sem que deixes de ser quem vieres a ser, serás sempre um pouco de mim, um pouco de quem se te deu, de quem te ama sem moldes, sem preconceitos, sem regras, sem expectativas. Mas com um orgulho imenso – e eterno – de ser tua Mãe.

ONDE GUARDAS O SORRISO?
















Onde guardas o sorriso
Quando te apagas à noite,
Quando te cedes, e és tua,
Quando adormeces - é preciso!-
Quando sonhas a tua sorte
Quando te vela só a Lua?

Que é dele -que tanto brilha-
Antes de te tomar o olhar
De te iluminar, dono e senhor,
-Quase ofusca, e maravilha-
Antes mesmo de te partilhar
Como uma dádiva de amor?

Que lhe fazes quando te afogas
Nas esquinas e encruzilhadas
De muitos adeus e até depois,
Em rios de lágrimas sufocadas,
Mas nascidas, mal choradas,
Quando tu já não és dois?

Onde o deixas em repouso
-Como se uma jóia fosse-
Quando és só nostalgia
Quando toda tu és descanso
-Numa lânguida tristeza doce-
De um sorriso sem alegria?

Onde te guardas, no sorriso?