28 fevereiro 2010

ESPETADAS CIUMENTAS COM PICADINHO DE LOIRAS

- Não, Sr. Doutor, nem me queixo de todo. Tratam-me bem e... bem, pelo menos deixo de fazer aquelas coisas... sabe? Aquelas... pois.

- Bem, pelo que me conta, acho que a melhor solução é a hipnose. Uma vez que não se recorda da origem, do motivo do... do fenómeno, quer dizer... pois. Vamos lá então! Olhe para o meu dedo... está com muito, muito sono, isso... adormeceu, o tempo recuou, está a ver qualquer coisa... diga, conte-me o que está a ver...

- O joelho! Ordinária, cabra! A mostrar descaradamente as pernas. E ele a olhar... Pára de olhar, verme, porco, tarado! Ela cruzou as pernas. Cuecas pretas... rendadas, de prostituta! Tudo à vista. Provocante, vagabunda! E ele a olhar, só falta babar... Porque é que ele não olha para mim? Hoje até tirei o buço. E rapei os pêlos das pernas. Mas as dela... ai as pernas dela! Como são longas, torneadas, esguias! Que inveja!

Música, estou a ouvir música. Vamos dançar. estamos a dançar. Ela levantou-se. Tem um daqueles rabos em forma de coração. Este ordinário ainda apanha um torcicolo de tanto se virar para olhar para ela. Olha p'ra mim, Almerindo, filho, olha p'ra mim, que hoje fui à cabeleireira e até pus rímel! E pára de me pisar, bruto!

Não traz soutien, a descaradona. O decote mostra tudo quando se baixa. Valha-me Nossa Senhora! Indecente, sem soutien e com um decote daqueles! Chega-lhe ao umbigo! Parece uma manequim ao andar. Rebola tudo, chacoalha por todos os lados. O cabelo loiro, solto, encaracolado e longo, acompanha os sacolejos narcisistas. Vaidosa! Oferecida! Deve pesar no máximo cinquenta quilos. Cinquenta quilos, onde já se viu?!! Isso é o que eu preciso perder para ficar como ela... Ai que inveja, que ciúmes! Tem um rosto lindo, lindo! Olhos azuis profundos, boca carnuda, carmim, dentes de anúncio a pasta de dentes... Vira-te p'ra mim, Almerindo! Pára de olhar para ela. A besta também não desgruda, não pára de olhar para o meu homem. Olha para outro qualquer, desvairada, deixa o meu em paz!

Oops! Onde é que ela vai? Melhor, para onde é que ela vem? Ah! Se eu pudesse, metia-lhe uma venda nos olhos, para ele não olhar tanto! Que ciúmes, meu Deus, que raiva, raiva, raiva!!! Se ele olhar para ela mais uma vez que seja, quando chegar a casa, furo-lhe os olhos com a agulha do tricôt. Os dois, um por um! Almerindo, filho, pára de me pisar, vê se te lembras que estás a dançar, porco esfomeado! E pára de olhar para ela!!! Ah! Piscou-lhe o olho, a marafona! Mas!... Mas!... Ah! Não, não!!! Por favor, não me deixes aqui sozinha, Almerindo, filho! Anda cá! Deixa essa ordinária! Larga-a Almerindo! Volta, estás perdoado, filho! Volta! Nunca mais, nunca mais te obrigo a limpar a retrete! Prometo, mas não me deixes, não!!! Ah!! Oh!! Está-me a dar uma coisa, valha-me Santa Engrácia! Ohhhh! Ah! Aiiiiiii...

- Pronto, calma, não se passa nada, vai acordar calmamente, isso! Passou... melhorou? Água? Aqui tem.

- Ai, Sr. Doutor, descobriu? Descobriu porque é que não consigo ver uma loira de olhos azuis sem a esganar, massacrar, triturar? E porque é que não posso ver um homem sem lhe espetar as agulhas de tricôt nos olhos? Eu juro que me tento controlar! De todas as vezes que aconteceu... eu tentei, tentei, sim, mas não resisti e... percebe?

- Bem, não foi nada grave, sabe... Não! Não se aproxime! E não vale a pena tentar tirar o colete de forças! Parece que, afinal, o seu problema são só uns ciúmes mal digeridos...

- E qual a solução, Dr.? Tenho cura?

- Oh, sim, claro: colete de forças 24 horas por dia, grades reforçadas na cela e, olhe, paciência, muita paciência... Vou enviar umas notas ao chefe da cadeia:

''Diagnóstico: ciumite aguda, com síndroma pós-traumático e violento, desiquilíbrio permanente e fundamental. Serial killer incurável e altamente perigosa.

Recomendações: manter afastada de homens. Jamais partilhar cela com loiras!!! Inofensiva com morenas.''

 
AMIGA: 1/3 de promessa cumprida. Mais ou menos, que este é do fundinho do baú..... Pronto: 1/300 de promessa cumprida! Beijo português, gigante para chegar a Angola! Love you, miss you!

AVÔ

Por entre as rugas da face adivinham-se histórias, ou História... O andar trémulo, apoiado na fiel bengala denuncia os anos que se ocultam na memória. A voz que desafina no esforço tenta reproduzir melodias antigas, cantadas outrora com vigor e afinação. À desgarrada, ninguém o batia e era ele o cantador da aldeia. Nos dias de festa, pegava no harmónio e recheava a música de versos que Deus lhe enviava sem aviso. Jamais fixava uma quadra, jamais a preparava de antemão: as palavras nasciam-lhe na inspiração e morriam com o fim dos sons da concertina.

Por entre as pedras escuras do balcão da casa, contempla com os olhos apagados o dia aceso: brilha o Sol num céu feito de fiapos brancos muito ténues. Venera aquela luz indistinta, a única que ainda repassa a parede de cataratas construída. O tempo não perdoa...

O cabelo de fios de prata abundantes e rebeldes surge desalinhado sob o chapéu negro surrado, maltratado do lume e dos anos. Foi barbeiro. E lavrador. E mineiro. E pedreiro. Sim, pedreiro, quando foi para a França!

Homem de mil ofícios, em menino foi pastor. Conheceu as invernias na serra, dormindo sob cabanas improvisadas. Conheceu a linguagem dos elementos, dos animais. Tornou-se caçador afamado: não havia coelho que lhe escapasse. Era o tempo da liberdade: pés descalços no verão, tamancos de madeira no inverno, que ele próprio fazia.

Depois das cabras e das ovelhas, o arado. Pai e mãe, irmãos e irmãs, juntos pela lida na terra que garante o mitigar da fome. De Sol a Sol, com chuva e neve, a terra não tem horários nem feriados...

O corpo franzino de sempre é agora quase esquelético: músculos firmes desabaram em pregas de pele e com eles, desvaneceu-se a força que, em jovem, lhe permitia fazer longas caminhadas e jornadas de trabalho de sol a sol.

A memória não se esquivou com as forças. Está lá, plena de vigor, exercitada compulsivamente pela necessidade de fuga à escuridão do dia-a-dia, como se fosse sempre noite.

Por companhia, um rádio. Ouve o relato, as notícias e o terço. Também é o amigo sem rosto que lhe diz as horas e o dia da semana.

Nos dias frios, aconchega-se nas recordações dos pés quentes da mulher que lhe morreu no parto, e lhe deixou como herança dois moços e uma menina – só os rapazes, que teve saudades da menina e chamou-a a si mal volvida uma semana.

É feliz com muito pouco, o tanto que por vezes lhe falta: companhia e carinho. Conta anedotas malandras fazendo de conta não saber que há mulheres por perto. Cai-lhe uma lágrima no meio dos silêncios, porque são de gente, não são os do campo, cujos segredos conhece e guarda.

P’ra lá do século – com que já conta – é tudo lucro.

Um beijo meu – é um tesouro!

Ao meu Avô, que com 105 anos coleccionou o último silêncio, meses depois do último beijo que lhe dei – um tesouro que sei que guardou. Como lhe guardei a saudade.

21 fevereiro 2010

MADRUGADA

Acorda-me de mansinho, com salpicos de beijos.

Não te vás com a madrugada. Fica e deixa-me ficar enroscada neste odor de beijos trocados. Deixa-a, a mão dada. Que seja minha pelo fim da noite, que me afague o rosto enquanto fizer a torrada, que me enlace e me estreite num abraço durante um pequeno-almoço preguiçoso.

Deixa-a largada na curva da minha cintura, enquanto dormes e me embalas na música do teu respirar. Sinto-te o pulso, agora calmo, na minha pele, agora seca. O tempo já vem, deixa-o andar! Se pensares bem – ou se não pensares – o que desejas é deixar-te estar. Mesmo sem beijos para trocar, já sem segredos para revelar… Fica comigo, só por ficar.

Pela janela, vê-se o luar – é mais belo ainda ver o Sol raiar!

Não te vás antes de o suor secar. Vela em silêncio pelo meu sonhar, sorrindo só por relembrar. Levanta o lençol, devagarinho. Contempla-me: toda desalinho, toda despojos do teu amar. Acaricia-me, só a pensar, com medo de me acordar. Encontra espaço, vem-te deitar, que não são horas de abalar.

A luz do dia – quero cegar – queima a ilusão, faz-me chorar!

Estendo a mão, a despertar. Quero-te ali, para te tocar e com um abraço recomeçar. Imagino-me com a tua camisa branca, puro cliché, em frente à cama, para te acordar, café na mão, a fumegar. Para partilhar. Deixaste a toalha de banho fora do lugar.

Beijas-me hoje com estilhaços de ontem. A madrugada soube-te encontrar.

POIS É…

Pois é...

Há um momento em que a realidade não é, em que subimos ao sonho no hélio da esperança. A queda é sempre violenta, por mais colchões que tenhamos empilhado para o caso de... Vivia já num luto que não sabia quando uma senhora doce me disse: «Quer um atestado?». Tinha uma pilha de colchões - sou previdente - e ainda assim me senti esmagar contra pregos. Eram todos de camas de faquir.

Um mês de vida, no máximo, disse-me a médica, furando o balão e abrindo caminho à enxurrada de lágrimas que não podia verter.

A dois metros, para lá da porta entreaberta, um padre rezava esperanças irreais na percentagem. Um rosto magro e omisso de cabelo - virou-se para mim e descortinou a lágrima teimosa que não consegui guardar para depois. Só uma. E perguntou:

- Porque choras, filha?

Porque choro?

- É do Pai Nosso, Mãe.

Mas ela sabia. Que eu não acredito em Deus. E o resto também.

Uns dias depois - muito menos que o vaticinado mês - falava-lhe por detrás de uma cortina de um serviço de urgências piedoso. Que descansasse, que dormisse, que eu estava ali (em palavras doces). Que cada inspiração fosse a última porque mais tempo de sofrer não valia para viver amor. Que a amava e que podia ir em Paz, que eu ficava bem (de alma para alma). Nem uma lágrima, só Paz e Confiança no fim do Futuro.

Acabou.

Dedos treinados na jugular, no braço:

- Já não tem pulso.

Pois não. Já sabia.

No mês seguinte – coincidência? - Engravidei.

A minha filha é Alegria pura, num Futuro de amanhãs.

Por entre os sorrisos, as gargalhadas, os dias que correm para o dia seguinte, uma sombra que resiste à escuridão instalou-se confortavelmente. Abraço-a e sinto-me plena na partilha desse sentir que tem que ser que ser gigante, porque tem muitos donos.

Chama-se Saudade.

«Outono»: obrigado por abrires esta porta, na tua própria saudade.

18 fevereiro 2010

ESPERANÇA

Pedalava velozmente, vigorosamente. Meta! Vitória! Era só no que pensava. E olhava para trás, ansioso: não, não vinha ninguém, deixara-os para trás.
A sua vida resumia-se à bicicleta. Mais que um prazer, um hobby, era uma profissão abraçada com paixão. Um escape, quase uma amiga. Desde pequeno, desde a velha ''33'', tinha o hábito de pedalar para longe, sózinho. Era uma sensação incrível de liberdade.
A ''33'' era uma pequena bicicleta amarela. O nome devia-se ao facto de ter uma pequena chapa, imitando uma chapa de matrícula, com o número 33. Foi a avó que lha deu num Natal longínquo. Depressa se desenvencilhou das rodinhas e cada vez se afastava mais da pequena casa isolada.
Viveu com a avó, feliz, até aos 7 anos. A felicidade acabou quando a velhota morreu e ele teve que ir para junto da mãe, que vivia à época com um quarentão abrutalhado. Era jovem, a sua mãe. Quando ele nasceu, fruto de um encontro fortuito atrás de uma qualquer moita, tinha apenas 17 anos. Não aguentou a vergonha ou a responsabilidade e fugiu, deixando-o com a avó. Algum tempo depois voltou à terra, de visita, com um ''marido'', a que se seguiram vários outros. Este último chamava-se Alberto e não gostava de crianças. Ao que parecia, de mulheres também não: batia em ambos, nele e na mãe. O dinheiro evaporava, transformado em álcool consumido avidamente, em quantidades industriais.
Ele fugia ao mau ambiente com a ajuda da ''33''. Montava nela e pedalava horas sem fim, descobrindo atalhos, caminhos, lugares. Sempre só: tinha vergonha dos outros meninos, não sabia o que responder quando lhe perguntavam porque andava sempre com manchas arroxeadas no rosto, nos braços... Não gostava muito de falar. Preferia pensar, passear pelo mato, pelas veredas e ver as plantas, os bichos, o lado bonito do mundo.
Um dia, o padrasto, num acesso de fúria, partiu a ''33''. Ele ficou triste. Chorou, deixou de comer. Passava os dias pelas redondezas, olhando o riacho, sentado numa árvore, sempre por perto. Preso, como o pássaro a que se cortam as asas.
Quase nem notou que a mãe, que nunca trabalhara, por vontade expressa do tirano, passava as manhãs fora, mesmo contra a vontade (e a força) do padrasto. Cada vez mais metido consigo mesmo, absorto num mundo só seu, não notava nada, nada lhe interessava.
No Natal, habituou-se a não esperar presente algum. Como nos natais anteriores, a consoada terminaria em porrada, gritos, choros e, no dia seguinte, uma monumental ressaca do padrasto, com inerente mau humor. Não se enganou. A consoada foi como previra. No dia seguinte acordou cedo e saiu para o quintal. E ela estava lá: um sonho! Uma bicicleta enorme, prateada, toda reluzente, com mudanças e tudo! Montou com dificuldade, mas apanhou-lhe o jeito e, rindo, ganhou a estrada, com um grito surdo de felicidade encravado no peito.
Pedalar, tinha que pedalar. Tinha que ganhar, seguia isolado, tinha que ganhar a etapa. Queria vencer a prova, montado numa bicicleta topo de gama, mas sem esquecer nunca a bicicleta prateada, aquela que a mãe lhe dera num Natal anos atrás. E sem nunca esquecer a mãe, agora que já faltava pouco, muito pouco, para resgatar a mãe do inferno em que ainda vive e que ele já viveu. Mais um pouco, mais um derradeiro esforço, força nas pernas e a etapa está ganha. A etapa e o desejo de dar à mãe uma felicidade tão grande quanto a que ele sentiu quando saíu para o quintal e viu uma enorme e reluzente bicicleta prateada.
Que baptizou de ''Esperança'' e lhe devolveu o Mundo.

17 fevereiro 2010

BAILE DAS SORTES, 1946

A semana teima em não passar. A expectativa empata os minutos, como se todos os relógios do mundo fossem atacados por uma incrível preguiça. É na sexta feira, na sexta! Não se fala noutra coisa na pequena vila. Por entre o branco reluzente das casas, enfeitadas da alegria roubada ao azul do rodapé, comenta-se o acontecimento. Grande evento: acontece só uma vez por ano, e é quando é! No interior fresco, à claridade de janelas e postigos, dão-se os últimos pontos, remates finais do fatinho novo, novinho! O primeiro fato de homem! E nada de engordar: também tem que servir para o casamento. A vida está má...
Meninos que são, querem ser homens. Já falta pouco. Fatiota à maneira: fato novo, camisa nova e sapatos! Sapatos, sim senhor! Com a nova vestimenta, passam a poder rivalizar com os outros, com os homens, e dançar com todas as raparigas do baile. R-A-P-A-R-I-G-A-S!!! Chega de dançar só com as gaiatinhas! Só se fala da festa. Para receber os heróis.
Junta-se dinheiro, partem-se mealheiros, pede-se emprestado. É preciso, os moços não podem fazer má figura em Lisboa, era o que faltava! Ah!, como eles crescem depressa. Ainda ontem eram cachopos de colo, gaiatinhos. Agora... olha p'ra eles a fazer cigarros às escondidas, a namorar, a trabalhar e... ai, senhores, que emoção: vão tirar as sortes! As sortes! Vão a Lisboa, para a inspecção militar. Com sorte, são aprovados e depois... depois mandam-nos para longe, para os quartéis espalhados por essas terras fora. Voltam à vila fardados, vaidosos, arrancando suspiros às donzelas casadoiras. Vêm uns senhores!
Alguns seguem vida na tropa. Ficam p'ra lá. Não fogem à saudade, nem às origens. Esquivam-se ao trabalho duro da ceifa, da azeitona, do pastoreio. Muito trabalho e pouco dinheiro, não querem destino igual ao do pai, do avô, do bisavô...
A história repete-se, quase anualmente. Eufóricos, os moços! A tropa é coisa séria! Ali, sim, são homens de verdade, são gente, deixam de ser gaiatos. Novidades, ui!, tantas! Hão-de trazer muitas para contar à amada, enquanto namoram da esquina para a janela, com a mãe à porta, de vigia.
As sortes são o início de uma nova vida. E uma grande honra, se ficarem aprovados para o desempenho do serviço militar! No Salão do Grémio Recreativo Arronchense, afixarão uma placa de bronze, perpetuando o evento, com seus nomes gravados:
''Ao dia 27 de Outubro do Ano da Graça de 1946, Ambrósio Arranhado, Isaltino Grilo, Manuel Farinheira, Augusto Morcela e Gregório Pintassilgo, valorosos Homens da nossa bela vila de Arronches, foram admitidos nas Forças Armadas da República Portuguesa, servindo assim o seu país, no cumprimento do Serviço Militar Obrigatório.
Singela homenagem do povo arronchense.''
Muda a data e os nomes, mantém-se a tradição e o texto, como atesta a grande parede do salão de baile, repleta de pequenas placas idênticas. Entre as placas, o baile, o fato novo, a euforia popular que agita a pasmaceira usual, desliza o tempo e chega finalmente a sexta feira, o grande dia!
Adeus, adeus meninos! Fato novo, medo e esperança, que bem cheguem e bem voltem. No regresso, mais homens que gaiatos, festeja-se a aventura, ritual de iniciação, com bom vinho e dança pela noite fora. A vila em peso, de fato domingueiro, saúda os heróis no Baile das Sortes. Música, maestro! E prepare-se o coração para as saudades, que é tempo dos cachopos, agora homens, irem p'rá tropa. P'rá tropa, senhores! Ainda ontem os gaiatinhos andavam de gatas...

16 fevereiro 2010

A ESCOLHA

Os seus olhos percorriam o espaço, olhavam o céu, o ondular lento do rio. Desviavam-se frequentemente, nervosamente, em direcção ao caminho de terra batida. Debaixo do braço, as poucas coisas que podia dizer que eram realmente suas: uns sapatos, umas calças rasgadas e uma camisola surrada e gasta. Sabia que era o fim de uma etapa. Mas temia a etapa seguinte. Assustava-o o futuro que não conhecia, por pior que o passado tivesse sido. Bom ou mau, era o seu ambiente. E agora, como seria? Teria que tomar banho todos os dias? Horários fixos para as refeições? E dinheiro? Sim, dinheiro para comprar uma pastilha, um chocolate, aquelas coisas que via nas montras, com dinheiro no bolso, o suficiente apenas para comprar os papos-secos para o almoço. Não se podia dar ao luxo de o gastar em gulodices! Uma coisa era certa: não mais teria que se sentar na estação do Rossio, fingindo ser aleijado, refugiado da Jugoslávia, ceguinho, deficiente, enfim, o que rendesse mais trocados. Sim, porque isso de pedir esmola é uma arte, é preciso saber para que lado estão os ventos, que é como quem diz, as sensibilidades dos lisboetas.
Magicava insistentemente num problema: não tendo que pedir esmola, seria difícil passar os dias assim, a olhar para as moscas, sem nada que fazer. Decidiu que perguntaria aos outros meninos o que fazem para passar o tempo. Ou talvez o obriguem a ir à escola. Isso é que ele dispensava. Ficar fechado tanto tempo dentro de uma sala, sem poder correr, descobrir coisas... É melhor ir até às fontes de Lisboa tomar banho, tentar caçar pombos, ou entrar no cinema às escondidas...
São quase nove horas. A hora combinada. Pronto! Começou a tremedeira. Até parece que vai roubar uma maçã na loja da D. Margarida. Ela pensa que ele nem desconfia, mas ele sabe que ela faz aquela fita toda só para assustar, para não o habituar mal. Ela até põe sempre o caixote das maçãs perto da porta! Agora nunca mais vai precisar de roubar maçãs. A D. Margarida vai ter saudades, de certeza!
Já passa das nove e nada. Se calhar não aparecem. Talvez fosse melhor se não viessem. Afinal... Mas tem que ser, é melhor, como a outra senhora explicou. Vai ter melhores condições, mais segurança – um futuro! Só maravilhas à sua espera! Mas então porque é que o coração está apertado, porque é que as pernas tremem, porque é que o papo-seco lhe anda às voltas no estômago?
Chegaram, finalmente. O carro é enorme! A senhora da Assistência Social é bonita. Vem vestida de preto. Eles também vieram. Ela é loira, já não muito jovem, mas tem um sorriso simpático. Ele tem um ar austero. Assusta-o. Tem ar de médico, mas é empresário. E agora? Não sabe o que fazer! Eles caminham na sua direcção. Desculpam-se pelo atraso com o trânsito infernal. Ele sorri, tímido. Não consegue articular uma única palavra, limita-se a encolher os ombros. Convidam-no a entrar no carro, falam-lhe da vida de sonho a três que começa naquele momento. Vai ter de tudo: muito amor, carinho, um quarto só para ele, brinquedos, um explicador, um motorista para o levar à escola. Vai fazer muitos amigos. Pode levá-los lá para casa, para a piscina...
Eles falam, mas ele está longe. Empurram-no na direcção do carro, mas as pernas não lhe obedecem, para além da ansiedade e do receio. Olha para trás. Vê o casebre quase a cair, a janela entreaberta, os arbustos desordenados, até as moscas coreografando uma despedida e desejando-lhe tudo de bom.
Não imaginou que fosse tão difícil. E seria mil vezes pior se os pais e os irmãos estivessem ali - não estavam, felizmente! Despediram-se antes e foram embora. Não teriam coragem de o ver partir, embora achassem que era o melhor para ele, a única forma de ter tudo o que não lhe podiam oferecer. E manteriam o contacto, pois claro!
A Assistente Social passou-lhe a mão pela cabeça quando viu as lágrimas brincar nos seus olhos. Disse-lhe para ter coragem. Não teve - ou terá tido?... Não quando viu o seu irmão pequenito correr na sua direcção, agarrar-se-lhe às pernas e, com a ingenuidade dos seus quatro anos, dizer-lhe para irem jogar à bola. Virou costas e correu na direcção dos pais e das duas irmãs, escondidos atrás da moita de onde surgiu o pequeno Miguel.
Teve pena daqueles senhores, mas não seria capaz de deixar de tomar banho nas fontes, de caçar pombos e de ensinar o irmão a roubar maçãs na loja da D. Margarida. Se calhar não se habituaria a usar sapatos e de que lhe valia a piscina, se não sabia nadar? O pior era a fome, mas isso, era uma questão de aperfeiçoar a arte e descobrir novos truques para comover os lisboetas... E depois, sem ele por perto, quem ensinaria o "puto" a jogar à bola? Afinal, as mulheres, de futebol, "não pescam nada"!

15 fevereiro 2010

JANELA


... traz-me sorrisos em vasos, abraça-me com trepadeiras e enche-me os espaços em branco de beijos verdes repenicados. À transparência, pelas vidraças, vejo-te chegar e cubro-te de amor à sombra de um olhar doce...

14 fevereiro 2010

O ARQUIVO

A multidão apinhava-se nas imediações. O eco dos sussurros alastrava lentamente. Os gaiatos, traquinas, furavam por entre as pernas anónimas e aproximavam-se do portão.


Chegou um carro preto. Enorme. Reluzente. Um luxo! De lá saíram dois homens enfiados em fatos pretos, distintos. Barba e bigode, pasta na mão, um deles olhou para o relógio. Será que esperavam alguém? Cinco minutos depois chegou o camião. Coisa enorme, jamais vista na aldeia.

O do bigode furou a custo por entre a multidão, seguido pelo outro, muito preocupado com a lama nos sapatos espelhados, de verniz. Gente da alta! Sacou da chave e tentou abrir a porta, pesada, forte, do velho casarão.

O "Casarão dos Fantasmas" - era assim que as gentes lhe chamavam - era o centro da curiosidade da população. Há décadas - séculos - desabitado, ninguém fazia ideia dos seus donos ou moradores. Constava na aldeia que o último habitante fora um velho muito rico. E diziam que o velho fechou a porta e as janelas e se matou. Que o seu fantasma toma conta do casarão há séculos. Por vezes, ouviam-se ruídos estranhos vindos lá de dentro. A Isaura do Almerindo jurava que já ouvira quando passara por lá à meia-noite, numa sexta-feira qualquer. passos e gritos,

As trepadeiras já haviam tomado conta das paredes outrora alvas de cal. Os vidros das janelas, rachados e rotos, serviam de instrumento que o vento tocava em noites de invernia. O jardim eram silvas amontoadas, que se avistavam por entre as grades do portão principal, entre um muro alto e rachado, impenetrável. O casarão, de dois andares, era imenso, grandioso. E, contudo, inexplicavelmente abandonado.

A chave teimava em não entrar na fechadura, e logo os populares encontraram pretexto para apostar: "Um copo de três em como o raio da chave não abre a porta!". A curiosidade acelerava as batidas dos corações. Anos, em alguns casos, vidas, de curiosidade, de convivência com o "Casarão dos Fantasmas": a chave tinha que abrir!

Do camião, saiu um homem de fato-macaco, com qualquer coisa na mão. Passo apressado, rapidamente furou a curiosidade amontoada e chegou junto do homem de barba e bigode. Volta para aqui, volta para ali, um pontapé e... alguém ganhou um copo de três: a chave não abriu. Mas a porta cedeu ao pontapé e estatelou-se no chão, levantando uma nuvem de pó. O do bigode tossia, sacudia-se freneticamente; sacou do lenço alvo e colocou-o sobre o rosto, por causa da alergia.

A porta traseira do camião – enorme - abriu-se de par em par e de lá saíram vários homens, de fato-macaco verde. Juntamente com os dois finórios e o outro (o do pontapé), penetraram na escuridão.

Carregaram de tudo, devidamente embrulhado em teias dearanha, supostamente seculares: mesas, cadeiras, móveis, um piano, bustos, candeeiros, quadros... Em meia dúzia de horas levaram tudo o que quiseram. "Foram à falência!", diziam uns. "O herdeiro vendeu a casa!", garantiam outros. Fosse o que fosse: à tardinha estava tudo acabado.

A fechadura do portão, de novo fechada a sete voltas, teria resistido a mil assaltantes, mas foi impotente perante a curiosidade popular coleccionada durante anos - vidas inteiras! A casa e as teias de aranha foram violadas pela segunda vez no mesmo dia. Para gáudio da pequenada, sobraram livros amarelados com desenhos diferentes, coloridos; antigos brinquedos empoeirados e bonecas! Bonecas... As mulheres, histéricas, gritavam e berravam na cozinha, tentando açambarcar os melhores tachos, panelas, pratos...

Mas... o mistério estava no escritório, junto à lareira, sobre a qual a mancha quadrada de tinta não desbotada -memória de um quadro que ali descansou – provava ter tido muito uso. Não tinha chave, mas tinha uma série de gavetinhas com fechadura. Parecia... um arquivo! Era um arquivo! Fechado à chave! Não havia esqueletos no casarão, nem fantasmas: havia algo ainda mais misterioso, um arquivo! Num piscar de olhos, surgiram centenas de chaves saídas dos bolsos dos inquietos coscuvilheiros. Nada, nem uma servia! Dormiram sobre a curiosidade. Será que conseguiram dormir?

Na manhã seguinte, o Jerónimo -o único que tinha um cavalo na aldeia, largou a galope até à vila mais próxima. Trouxe consigo o serralheiro, que passou horas em redor das minúsculas fechaduras. Infrutiferamente. Nem sempre resulta, mas foi a solução: algumas marteladas vigorosas e a madeira do fundo cedeu!

O que continha o enigmático arquivo? Talvez a resposta a décadas – séculos - de mistério em torno do dono da casa. Papeladas, por certo. E importantes, decerto, caso contrário não estaria fechado à chave.

Na primeira gaveta, nada! Decepção suprema! E nas restantes? Cartas. Cartas de amor! Amarelecidas, contendo frases de estrutura e palavras estranhas e sentimentos amarelecidos, empoeirados, embolorados. Só cartas. Ah! E um livro de poemas, manuscrito, em cima de um diário atado com um laço cor-de-rosa...

Entre as páginas do diário, uma rosa amarelada - quem sabe outrora púrpura - que escondia parte das palavras cuidadosamente transpostas, com letra enrolada e harmoniosa, para o papel: "Sinto que o nosso amor é eterno. Nosso, mas tão belo, que tem que ser também do mundo. Como gostaria que todos soubessem o que sinto! Cada página deste diário é par mim uma multidão com quem partilho a minha felicidade!". Parecia que a rosa fora colocada ali propositadamente, para que todos soubessem... Como se a sua autora soubesse que...

Ofélia: o único nome descoberto após a ávida e cuidadosa análise de todas as cartas, poemas e do diário. Ofélia... Papéis amarelecidos, mas sentimentos vivos, eternos. Tudo, menos embolorados. E finalmente conhecidos de todos...

Longe de decepção, o arquivo fecundou novas lendas. O Casarão dos Fantasmas", é agora a "Prisão de Ofélia": uma donzela apaixonada, que ali foi encerrada e que era feliz escrevendo cartas de amor a um homem sem nome, nascido da sua imaginação...

A LUZ DA RUA

Àquela hora a rua parecia mais deserta e densa no seu fluir. A beata do cigarro lembrava à escuridão que alguém a atravessava, discretamente, como se não quisesse ser visto. A tarde parecia-lhe agora muito mais luminosa, talvez pelo contraste com o negro da noite. E, apesar disso, o brilho era-lhe cada vez mais confortável. Brilhante, a tarde... em todos os aspectos. Pareceu-lhe rever-se num espelho um pouco menos traiçoeiro numa vida em que nada é o que parece ser!


O eco dos seus passos deveria fazer-se sentir, mas não fazia. Mais porque quase levitava do que pelo facto de a sola dos sapatos ser de borracha. O mais estranho era, no meio da impenetrabilidade da noite escura, recordar-se tão bem da claridade absurda daquela tarde quando, de dentro da casa só havia olhado de relance para a rua, através da janela aberta... Olhou apenas fugazmente para algo quando, em geral, a preocupação em observar, avaliar e processar a informação era mais que uma necessidade, era um modo de vida. Mas a impressão da 1 luminosidade era teimosa, insinuante, descaradamente invadindo a sua tranquila forma de estar apagado no mundo…

Sentia-se ofuscado na tentativa de digerir o irreal, o inusitado, o impossível. Tentava recordar-se das palavras geradas entre gestos lânguidos, no desnudar de um carinho quase pecaminoso, desajustado, como se as árvores ostentassem estrelas em vez dos seus frutos, num non sense óbvio, agressivo. Procurou olhar melhor para as estrelas pendendo dos ramos que o inverno despiu, mas fechou os olhos, fugindo ao confronto da luz que emanavam, tal qual a luz diáfana que aos poucos parecia dispersar-se como se de nevoeiro se tratasse. Pareceu-lhe ver, de olhos fechados, um vulto...

Acendeu outro cigarro, enquanto as solas de borracha silenciosa o levavam para lado nenhum, ao longo das ruas molhadas por uma chuva que parecia não o atingir. A ponta incandescente queimou um pouco mais da escuridão e pareceu ajudar a dispersar a bruma luminosa que lhe toldava o espírito. Reconheceu, para além daquela, algo mais... Cerrou as pálpebras vigorosamente, como que para garantir absoluta privacidade para o encontro do seu olhar com o dela.

Começava a duvidar que a luminosidade que atribuíra à tarde lhe pertencesse realmente, à medida que, no encontro, se tornavam nítidos os contornos, a cor, o sentimento contido na expressão... o vermelho intermitente denunciava a sua tensão, descarregada no cigarro. A ausência de luz escondia confortavelmente o sorriso soltando-se-lhe dos lábios, ao recordar a luz que o olhar dela emprestou àquela tarde e ao seu próprio ego -esquecê-lo-ia algum dia?

Ganhou coragem, ousou tocar de novo o corpo nu, percorrendo-o com a veneração da primeira vez, mas sentindo ao mesmo tempo que o conhecia de sempre, como se tivesse cada contorno, cada imperfeição, cada recanto perdido, guardado numa espécie de memória do futuro... Sentiu-lhe o cheiro, absorvendo-o em inspirações vigorosas, soltando-o lentamente, junto com o fumo do cigarro...

A luz roubada pela tarde perdeu o charme, devolvida que teve que ser à proprietária do sorriso, aquele que, junto com o olhar, lhe iluminou o caminho até um espelho mais fidedigno, menos distorcido, reflectindo de si as coisas que não conhecia e as que não queria dar a conhecer.

O enésimo cigarro acendia-se de novo, ferindo a noite com a sua ponta incandescente. Os sapatos de sola de borracha continuavam a levá-lo silenciosamente para um destino incerto. E a noite, companheira, continuava a esconder o sorriso que teimava em animar-lhe o rosto...

08 fevereiro 2010

REGAÇO

Abre-me o teu regaço.
Nele as lágrimas são só água, com detergente para as mágoas.
Nele, depois de secas, fazem-se sorrisos tímidos por fora e gargalhadas por dentro.
Nele acolhes as nódoas esfregadas que as minhas mãos em sangue não conseguiram eliminar.
Oferece-me o teu colo.
É quente e derrete-me os diques de cera, fura-os e oferece caminhos aos sentimentos.
É quente e o meu sangue circula de novo, visita capilares esquecidos, e esqueço que não posso chorar.
É quente e doce, amplifica as cores, os sons, as alegrias, sobrepõe-nas à tristeza cobarde que não se mostra, que jamais me abandona.
Dá-me a tua mão.
É firme e suave nas minhas, estão feridas, sem cicatrizes porque não saram jamais.
É firme mas terna quando me conduz à beira do meu precipício e me empurra mais aquele milímetro que me impedia de ver para além da ilusão de abismo.
É firme quando me guia, toque ausente, sempre presente.
Guarda-me no teu segredo.
Guarda-me as nódoas, lava-as em lágrimas, sacode-as com mão firme e põe-nas a secar no teu Sol que tudo branqueia.
Guarda-me alguns sorrisos, às vezes fazem-me falta. Deixo-te os mais bonitos, cuidas bem deles. Usa-os, se precisares.
Guarda-me um caminho, uma nesga entreaberta, com um fio da tua luz em jeito de denúncia da tua existência num segredo imaginado. Não tocarei à campainha, não te apoquentes. Só me sentarei do lado de fora, de costas para os abismos, pernas de encontro ao peito, mão estendida - já com cicatrizes, quem sabe? Um dia qualquer, quando precisar de chorar sem saber. Se abrires a porta, não te pedirei nada de especial. Só o teu regaço….

05 fevereiro 2010

PEDI EMPRESTADO... ADORARIA TÊ-LO ESCRITO. TEM UM SIGNIFICADO ESPECIAL PARA MIM, POR ISSO, FICA A PARTILHA

Como vai você
Como vai você ?
Eu preciso saber da sua vida
Peça a alguém pra me contar sobre o seu dia
Anoiteceu e eu preciso só saber
Como vai você ?
Que já modificou a minha vida
Razão de minha paz já esquecida
Nem sei se gosto mais de mim ou de você
Vem, que a sede de te amar me faz melhor
Eu quero amanhecer ao seu redor
Preciso tanto me fazer feliz
Vem, que o tempo pode afastar nós dois
Não deixe tanta vida pra depois
Eu só preciso saber
Como vai você
Como vai você ?
Que já modificou a minha vida
Razão da minha paz já esquecida
Nem sei se gosto mais de mim ou de você
Vem, que a sede de te amar me faz melhor
Eu quero amanhecer ao seu redor
Preciso tanto me fazer feliz
Vem, que o tempo pode afastar nós dois
Não deixe tanta vida pra depois
Eu só preciso saber
Como vai você

02 fevereiro 2010

ESPONJA


Estava em repouso no fundo do mar. Arrancada, violentada do seu lugar, viu-se mais uma de muitas, sentido ascendente, em direcção a uma luz brilhante e seca. Um solavanco inopinado da bicicleta e ei-la, projectada de encontro ao chão. Um pneu despojou-a da água que continha. E descobriu que não se quebrara, que podia ser leve. Tão leve que qualquer brisa mais atrevida, treinando o seu soprar, a podia deslocar. Rebolando sobre si própria, de vento em vento. De vida em vida. Seca. Vazia, de olhos fechados, com medo da próxima viagem, apesar de se saber flexível e inquebrável.

Vagueou durante quase todo o verão, já feliz com o corpo leve, ágil, sem forma. Olhos abertos em cada viagem, aprendendo o mundo, aprendendo as gentes, as vidas, como as crianças: numa alegre brincadeira. Os pólenes, as folhas secas, companheiros de brincadeira, seguiam-na na deriva da ventania. O tédio vinha só com os dias quentes, quando as brisas preguiçosas não apareciam, forçando-lhe a imobilidade.

Naquela manhã o céu estava diferente. Nuvens escuras – segredaram-lhe os pólenes, com voz grave e tensa. Pode vir chuva. Chuva? O que é chuva? Água em gotas, responderam as folhas secas. Água em gotas… E um redemoinho fê-la girar no ar, cúmplice, em jeito de consolo.

A primeira caiu fria, espalhou-se-lhe para o interior e percebeu que tinha sede. Soube-lhe bem. Não estranhou a segunda, nem a terceira, de bom grado as recebeu. Então isto é a chuva? Sabe bem! Sentiu saudades de se sentir molhada, imersa, plena e imóvel. E ofereceu-se às bátegas que a ensoparam, felizes pela recepção calorosa. As nuvens, aliviadas, afastaram-se e procurou os pólenes e as folhas secas, companheiros de descobertas. Estava densa, orgulhosa da sua capacidade de absorção. Abraçavam-se, inconsoláveis, numa união forçada.. As gotas haviam formado uma enxurrada, arrastando os pólenes e desfigurando as folhas, quebradas no chão, nervuras expostas numa montra de tristeza. Mudos. Viu-se só, preenchida, mas só. Ali ficou, chorando lágrimas sem saber, mesmo depois de adormecer.

Sonhou com o leito tropical onde nasceu, com a ondulação suave que a embalava para dormir e com a dança da luz, tentando alcançá-la lá no fundo. A textura da areia áspera não a feria, mas fazia-lhe cócegas quando as correntes a deslocavam, junto com as suas amigas. Não conhecia a solidão.

Acordou sentindo-se projectar numa rabanada de vento, resto do temporal do dia anterior, certamente. Havia secado. E, vazia de água e de companhia, descobriu a saudade. Desejou ardentemente regressar a casa, onde não havia aventuras extraordinárias, mas onde podia ver o bailado dos cardumes e o deslizar sereno dos tubarões pelas águas pouco profundas. Nem chorar podia, de seca que estava. Ouviu vozes e sentiu uma pequena mão elevá-la no ar. Depois foi a escuridão total e o pânico Sentiu-se apertada num sítio quente e apercebeu-se de um movimento, como o da bicicleta do seu raptor. O que lhe teria acontecido? Para onde a levavam? Como queria voltar a casa….

Sorriu, imitando os sorrisos e as gargalhadas do menino, enquanto lhe esfregava as costas e as pernas encardidas de brincadeira. A mãe segurava-a na mão, espremia-a com cuidado, passava-a com desvelo pelo corpo do filho. Pura sorte… encontrou uma família. Mas as folhas e os pólenes…

Descobriu mais tarde – quando envelheceu e se deteriorou – que na natureza, nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma. Numa espécie de reencarnação. Que abraçou com um sorriso, chegada que foi a sua vez.