29 dezembro 2011

Feliz Ano Novo!

PRIMAVERA


No fim de tudo, estou eu.

Pousada num ramo de amendoeira.

Longe das sombras

Exposta ao Sol

Seco.

Não caio com as folhas

Vejo a melancolia pousar

Esmoreço.

Lavo-me na chuva fria

Resisto aos vendavais

Fico.

Pousada num ramo de amendoeira

Eis-me, no fim de tudo,

À espera que floresças,

Primavera.

10 dezembro 2011

ASSIM

- Sim.

Sim, sim, sim, sim, sim.

Ribomba em eco dentro de mim

Assim.

Som metálico

Rosto pálido

Tanto amor

Para esta dor

Assim.

Sonoro em grito dentro de mim

Sim, sim, sim, sim, sim.

- Sim.

Respondes.

É o fim?



06 dezembro 2011

BORBOLETAS

Depressa, vai buscar as redes de caçar borboletas!

Muitas. Tantas serão de menos: traz mais ainda.

Rápido! Corre e trá-las. Senão…

Os pássaros voam e caçam no ar

As brisas sopram e na ira fazem-se ventos

O chão é frio e sujo e não me quero lá.

Lança-as ao ar, as redes,

Em movimentos suaves e circulares

E apanha-me na queda:

Porque implodi e estou desfeita

Em cinzas que flutuam num voo breve.

Que um pássaro me não confunda,

Que um vendaval me não faça perder,

Que o chão não me acolha para que me pisem.

Se não me recolheres toda,

Que me levem as borboletas.



6 Dezembro de 2011

29 novembro 2011

OS ESPINHOS DA ROSA

Vermelha. Todos os dias vermelha e viçosa. Rua acima, cortando as sombras dos edifícios em jeito de desafio. Ostentando juventude e alegria, um grito em todos os silêncios.

Em silêncio se move. Quase repreendendo a calçada por denunciar as suas idas e vindas. Cedo já é tarde para sair e na pressa os movimentos são ágeis e resolutos. Fica um perfume de mistério pairando no ar frio das manhãs que percorre mesmo de Inverno. Ninguém sabe muito sobre si nem sobre os seus. Que vai e vem. Só.

Rua abaixo, silenciosa, rápida, ágil, quase sem tempo para oferecer ao pensamento porque há sempre tanto a fazer. O rosto escondido na expressão angustiada – é preciso trabalhar, é preciso regressar – e o céu e as nuvens mais distantes do que para todos os outros porque o céu e as nuvens se afastam mais de quem nem sequer olha para eles.

As mãos ocupam-se em movimentos mecânicos, moldados pela rotina. Gastas de uso, o cansaço acumulando-se áspero nos calos. O suor repetindo-se todos os dias. Sozinha e muda, partilhando-se com o silêncio de uma casa e de mais outra e de mais outra, que deixa imaculadas para que outros desfrutem no regresso. Invisível.

No final de cada dia, no resto das limpezas, dinheiro no bolso, saco de supermercado dependurado no braço, comida para a mesa antecipando os sorrisos à espera do jantar (tão maiores do que o céu e as nuvens).

Vermelha, gritando às sombras que àquela hora já se abraçam ao
princípio da noite. Todos os dias, uma rosa se lhe oferece naquele jardim, sobrando da vedação, atravessando-se-lhe no caminho, forçando-lhe o olhar. Sorri e não resiste. Uma flor de espinhos que coloca no cabelo e que lhe canta, viçosa, a alegria silenciosa e furtiva de mais um dia conquistado. E que espalha, lá no bairro, o perfume poderoso da curiosidade.

















01 novembro 2011

À SAÍDA DA PORTA

Fui abrir a porta e não havia ninguém na soleira. O som das batidas enrolou-se numa dúvida e tremi sobre a certeza. Se calhar ninguém bateu. Se calhar…


Regressei à sala temperada de labaredas brincando na lareira e ao livro (ainda com as marcas dos meus olhos naquele parágrafo que me tinha feito arrepiar, como se uma brisa me tivesse soprado sobre a memória transpirada).


O cadeirão - no canto onde a luz é mais doce sob a janela do lado das buganvílias - rejeitou-me. Conhecia o meu corpo e as suas formas de cada noite que ali varei, no seu conforto e na fúria de mais um livro, na paz de tantas melodias. Conheceu um corpo magro, um corpo jovem, um corpo agora anafado, um corpo que se foi ajeitando à idade. Naquele momento, fingia que não me conhecia.


A televisão esforçava-se com artifícios luminosos e oscilações enfáticas de volume. Mas como quase sempre, em vão. Desliguei-a. Talvez assim o cadeirão me aceitasse, me oferecesse o aconchego de sempre, sob o candeeiro que comprei numa daquelas viagens que deveriam ter sido interessantes a qualquer parte do Mundo (mas que não foi).


Voltei à porta, os pés hesitando e adiando o mais que podiam o confronto com a invernia que envolvia o Mundo nessa noite. O vento agreste cortou-os de frio e os olhos que mal se podiam abrir perscrutaram em esforço o exterior mal iluminado (tenho que trocar a lâmpada que se fundiu). Nada. Não se via vivalma.


Nem na rua, nem na sala, onde o velho candeeiro – recordação mal amada– se apagou. Escuridão. E o livro ali pousado, e os dedos que não sabiam senão folhear páginas e a alma que apenas de histórias se alimenta ali: em pausa.


O Mundo parado e eu ali, à espera de luz. A memória da memória não me deixava em sossego. Que a porta tinha dado sinal - que sim! Sim! Sim! - que não era impressão minha e que as aparências iludem. E a escuridão que me desocupava as ideias, que me desconcentrava. E eu ali, vulnerável, com a dúvida martelando as minhas certezas em crescendo e em teimosia.


Mas não. Ninguém do lado de lá da porta de entrada. A frustração assim
vestida de incerteza cansou-me. Encostei-me à porta, deixei-me escorregar. Então senti o teu abraço. Senti-te quente, onda de ternura, o som da tempestade tão perto e tu acolhendo-me na tua paz. Rias de mim do lado de dentro da porta de saída. Já tinhas entrado. Já tinhas desarrumado toda a minha solidão.


Bateste à porta só para eu te encontrar.


Anda, deixa-te ficar. Trago o abraço vazio há tempo demais.

07 agosto 2011

A FINAL

No fundo, bem no fundo de mim encontrei uma porta com ar antigo. Mal se notavam as letras gravadas: «saída».


Atrevi-me. Afinal já estou no fim ou lá perto. O tempo passou e desbravou o caminho e agora passo o tempo sem caminho para percorrer.


A mão tremeu, suada, e um guincho irritante anunciou a abertura. Fechei os olhos, inundada já do medo que tentara conter.


Percebi por detrás das pálpebras cerradas a luz. Muita luz, muita paz. Abri os olhos.


No fundo de mim estavas tu, por detrás de uma porta onde a palavra «entrada» estava pintada de fresco.


Abri-a e entrei. Afinal, o meu fim, era acompanhar-te no teu começo…

30 maio 2011

FECHO

Puxa o fecho pela ponta e divide-nos. Aprisiona-me do lado de lá do tecido. É macio, elástico mas resistente. Posso sentir-te o cheiro através dele. Consigo perceber-te o volume e quero abraçar-te. Mas o fecho está corrido mesmo até ao cimo da vida, até ao horizonte do pano que nos separa as vidas. E os horizontes, para o não deixarem de ser, estão sempre um pouco para lá do nosso alcance.


Não chego lá. Ao fecho. Puxaste-o com firmeza. E agora sou uma forma que distingues com o tacto e completas de memória com a lembrança da boca que se entreabre, húmida. Da língua que se te oferece, quente, adivinhando-te o desejo. Do beijo que se rouba e que podia estar gasto, de tão imaginado, de tão ansiado de tão infinitamente repetido no desejo e tão parcimoniosamente trocado. E agora não queria que o tivesses fechado.


Encravaste-o. Vês o pano agitar-se com o barulho do meu desespero? Quase se quebra a moldura dessa tela tão atroz, que me fere o orgulho e me enlouquece de impossibilidade. Um «quase» maldito, inteiro, que não cede e resiste e não se esvazia do significado. Que me deixa exausta, mãos já molhadas das lágrimas que não contenho e te querem também em soluços convulsivos, num choro sonoro, interminável.


Do lado de cá as mãos em sangue dilaceram o metal, lutam com a ironia escorregadia dos dentes que entrelaçados – juntos!!! – ajudam a manter-nos separados. E o sangue diluído de lágrimas tinge-me a sola dos pés e arrasta-me a alma. Mecânico, o desespero esquece-te. Concentra-me no meu medo, na minha incredulidade e faz de mim ruído, quase só barulho sem noite, sem dia, sem descanso na solidão. Grito e lamúria, raiva e pena: tudo o que sou.


Um dia a ira despediu-se. Logo pela manhã. Estava farta de mim. A pena deu-lhe a mão e poupou-se às despedidas. Vazia fiz-me silêncio e imobilidade. Deixei-me. E então percebi um movimento ligeiro, do lado de lá. Do teu lado. Senti que respiravas, suavemente. Que repetias um murmúrio incessantemente:


«Foi sem querer que encravei o fecho, quando me pediste para o correr até ao cimo. Foi sem querer…»


O tecido era inultrapassável, mas elástico e permitiu o abraço e o cheiro. Deixou beber-te as lágrimas e sentir o odor da tua pele. E falar. Horas infinitas sobre o lado de lá, o lado de cá e a impermanência da vida. Perto, mas não unidos.


Um dia – lembras-te? - assustados enquanto dormíamos, colados ao nosso limite, sentimos que algo caiu. Os dentes que nos separavam (fecho maldito) enferrujaram. E do pano dividido em dois fizemos um lençol. Para a cama que nunca mais deixámos de partilhar.

14 maio 2011

A TUA PAZ

Tinhas um resto de lágrima mesmo por baixo do olhar.

Deixei-a ficar, apesar do movimento da mão direita. Queria afagar-te o rosto e limpar-te todas as lágrimas. Até as que ainda não choraste. Tolhi o gesto a tempo e deixei-me sem que me visses. A ver-te.

De costas, o teu cabelo esvoaçava porque estava vento e desenhava-te um rasto na brisa. Não te via a expressão, só os teus restos, o que deixavas para trás ao caminhar. Vamos deixando cair pedaços de nós quando andamos, para que alguém nos siga e encontre mais à frente no destino. Sabias?

Havia prédios à tua frente, sobrepostos, de janelas escancaradas, marquises fechadas e portas ameaçadoras que pareciam querer engolir-te. Pequena e frágil prosseguias e eu achei que era porque afinal eras forte. Mantinhas a passada e deixaste a urbe partida enquanto seguias inteira.

Entraste num automóvel. Fechaste a porta e a música ganhou-te. Tamborilavas no volante, corpo largado no assento, a cidade longe, lá atrás. O verde cresceu e cercou-te até limpar o Céu e te esgotar a estrada. A pé, por onde passaram outros pés, seguiste em frente sem saber bem porquê. Sentaste-te rente a uma ribeira contemplando-a, embalada pelo movimento incessante da água. O calor descalçou-te e sentiste a frescura do líquido cristalino. Como uma criança, chapinhaste a água com os pés.

Ficaste com uma gota de água no rosto, mesmo debaixo do olhar.

Parecia uma lágrima, que eu sabia que não era.

Deixei-a ficar. Na tua Paz.

08 maio 2011

LUZ

Gritos, sussurros, ofensas, pedras lançadas de lado nenhum e a luz… não fugia.


Descansava todas as noites, nunca breu, antes obscuridade onde mantinha um brilho diáfano, quase sumido.


De noite deixavam-na estar. Só até ao dia chegar e o brilho incomodar.


De noite, deixava-se estar quase bem, na vigília que lhe tolhia a profundidade do sono.


Manhã. Misturada com o Sol, passaria despercebida. Assim seria não fora o impacto que causava no sentir alheio. A luz do Sol até podia queimar. A sua… não devia existir.


Ainda assim não fugia. Brilhava firme, na sua missão de iluminar.


Sabia que um dia se apagaria. Mas só depois de ter iluminado tudo o que se lhe pedia.

27 abril 2011

ESTÁ TUDO DITO



A palavra não se diz e entre cada letra… sorris
Num mergulho de suor, esqueces o frio, a dor
E nas frases por dizer vives e fazer viver
A palavra não se quer mas não se deixa esquecer
E dos vazios faz leito, rio correndo a eito
Atropelo de beijo que não queima o desejo
A palavra não se escreve, flutua mágica e breve
Não quer poiso nem lugar, não se deixa capturar
Livre que é, vai e vem e não se dá a ninguém
A palavra, não se diz
A palavra não se quer
A palavra não se escreve
No silêncio do teu olhar
Afinal
Está tudo dito….

10 abril 2011

VOLTAR A PARTIR

Abres as páginas do mundo com essa gargalhada que te invade e clama e rasga e ecoa dentro de nós antes de soar fora de ti.
Lanças luz nos buracos negros do universo quando a brisa te sopra o brilho do olhar e o espalha, como purpurinas para além do segredo das estrelas.
Soltas mares e oceanos de águas doces ou revoltas consoante são de alegria ou de dor as lágrimas que choras.
És paz absoluta quando nos roubas os silêncios, quando os fazes teus, os abraças e acarinhas só para os devolveres depois, assim, memórias apaziguadas de mágoas passadas.
Esta mão, deixo-a aqui. Fixa-lhe o lugar sempre que fores passear numa bruma ameaçadora, sempre que uma alma atormentada te intrigar, sempre que o medo te fizer avançar.
Agarra-a, quando precisares de voltar.
Mas não te esqueças de voltar a partir.

27 março 2011

NO FUNDO DA RUA


No fundo da rua deixei-me
Fiquei só eu, lá atrás
Todos continuaram
Seguiram, avançaram
Serenos e em paz
E no fundo da rua sentei-me
No chão escuro, frio
Todos marcharam
E foram, prosseguiram
Sem olhar o vazio
E eu sentada lembrei-me
Do tempo que já foi
Quando os olhos se abrem
E olham e percebem
Mesmo aquilo que dói
E eu sentada preparei-me
Para saudar a solidão
Os outros não ficam
E seguem, abdicam
Até de saber onde vão
No fundo da rua estou eu
Sentada no frio do chão
Seguindo um rumo só meu
Perdida no meio da multidão

23 março 2011

ATRÁS DE TI



Atrás de ti
Na porta que não vês
Há uma silhueta
Recortada da sombra
Amarrotada
Largada
Do resto dos teus passos.
Atrás de ti
Uma chuva de porquês
Cai numa gaveta
Oculta na penumbra
Encharcada
Esquecida
Do calor dos teus abraços
Não te vires,
Não olhes,
Não procures.
Ou então
Arrisca
Cruzar-te
Com o futuro.


20 março 2011

PRESENTE

















Hoje.

Este- mais que todos os outros -
Não devia existir.
Para que já pudesse ser ontem.
Porque a dor e a tristeza
Custam sempre menos amanhã…
De presente?
Queria um vazio
Entre o passado
E o futuro.

10 março 2011

PODIAS


Podias ser corpo.
O meu que fosse.
Para seres calor apertado quando te abraço e me desfaço na dormência do que não se sente.
Podias ser corpo.
Ter olhos para olhar o céu.
Para te poder contar muito em segredo que o princípio de todas as nuvens é uma lágrima que não quer voltar a ser derramada.
Podias ser corpo.
Ter pele para sentir.
Para te encharcares do meu suor, brotando-te de cada poro, enquanto me deixas o teu cheiro no ar quando te afastas.
Podias ser.
Tudo o que quisesses.
Se ao menos existisses.







24 fevereiro 2011

AMOR


Foram-se as letras. E as palavras.

E mandas-me amar-te por extenso.

Já não há espaço na folha de papel.

E mandas-me desenhar o meu amor.

Não tem frases, não tem forma:

Fecha os olhos e recorda!

Já o soubeste de cor.














12 fevereiro 2011

GUARDO-TE

Não me olhes assim, com o adeus sob as pálpebras, ameaçando fugir na primeira lágrima que derramares. Não me beijes com a boca seca das palavras que se te acumulam sob a língua ensopadas de saliva. Não faças do abraço um torniquete da alma que espreita cada poro da tua pele nessa ansiedade de sair e ser.


Oferece-mo. Sim, oferece-me o «não». Guardo-to.


Despe-te. Das roupas, da rotina, de nós e dos outros. Faz-te ao avesso da vida assim: nú. Tão despido quanto conseguires. Serás tu e o que o mundo te quiser oferecer. Deixa que te puxem a ponta de cada rótulo e que o arranquem num puxão rápido. Passa pelas portas e pelas frestas estreitas ainda que as ombreiras e as arestas te arranquem pele. Lança-te do alto de ti: se quebrares ossos é porque já ganhaste altitude.


Guardei-o. O «não». Devolvo-to, embora saiba de antemão que já não te serve. Sobra-te, agora que o ego te emagreceu mas tu te agigantaste. Anda. Vamos largá-lo por aí e procurar pontos de exclamação na vida!

06 fevereiro 2011

MÁCULA


Abro a porta sem nada temer
Abro-a, como sempre, a tremer
De vontade e desejo de criança
Ingénua, ainda sabe da esperança
Abro a porta louca de te ver
Do lado de lá, ao longe, no querer
E caio na dor que me trespassa
Que me rasga na ponta da tua lança
Manchada do sangue a sombra do dia
Mácula pegajosa no chão onde queria
Ser tua para sempre e beijar-te outra vez
Logo a seguir ao amor que se fez

31 janeiro 2011

ALÉM TEJO


Ardes no vento que passa

Pedes água a cada nuvem

Sob o Sol que te trespassa

Não se vislumbra ninguém…

Nem coberto pelo ouro

Da riqueza que faz pão

Te adivinham tesouro

Ao alcance de cada mão.

Respiro a generosidade

Por entre passos sem eco

Da sombra e da verdade

De um sobreiro quase seco.

E oiço sob as oliveiras

Onde se sentava o pastor

As cantigas das ceifeiras

Derretendo sob o calor.

Ardes de febre e de vida

Abraças a noite num beijo

Feito de terra esquecida

Deixaram-te ficar Além Tejo.

29 janeiro 2011

SILÊNCIO

Meti a mão nas entranhas do silêncio
Esmurrei-o
Senti-lhe o sangue abrasador nos dedos
Rasguei-o
Soltou-se, irrompeu brutal em desvario
Persegui-o
Pelas vielas escuras da rua dos medos
Encontrei-o
Sentado ofegante num beco sem saída
Abracei-o
No abraço que se oferece à vida perdida
Amei-o
Menino perdido no meio de brinquedos
Guardei-o
Para sempre fechado na caixa dos segredos

25 janeiro 2011

UMA HORA


Ia a passar na rua, distraída, quando encontrei uma hora.


Uma hora perdida.


Já tinha ouvido falar delas, mas nunca tinha encontrado nenhuma.


Fiquei a observá-la.


Parecia tão hora como as demais, embora não parecesse tempo demais.


Aproximei-me devagar.


Perguntei-lhe se por acaso não queria uma ocupação, um destino.


Que não – senão gastava-se.


Em redor todas as horas estavam agrilhoadas ao estereótipo da felicidade.


Com lágrimas nos ponteiros.


Deixei-a.


Intacta.


E só.





22 janeiro 2011

E PORQUE NÃO?



Enrolei-me numa cortina, porque não podia ficar nua. Há momentos em que a nudez nem sequer existe, porque se está vestido só de alma. Mas não podia ficar nua enquanto a alma vagava sem destino. Era translúcida e acetinada, suave. Cobri os ombros, enrolei-a ao corpo, segurei-a com uma mão. Deixei a outra no calor macio, escondida. ´


Tolhia-me os movimentos, por isso andava devagar. Mas sempre e em frente. Olhos postos numa espécie de horizonte que não acompanhava a curvatura da terra. Numa linha que se deslocava tanto quanto eu – exactamente à mesma velocidade que os meus passos enrolados e que se perfilava ondulada à distância.


Apercebi-me que o chão era absolutamente normal, por isso o calor abrasador nos tornozelos tinha que ter outra origem. Ardia. A minha parca vestimenta estava em chamas – num fogo quieto, manso, sem labareda à vista. Consumia-me o abrigo lentamente, testando-me o limite.


Avistei um lago ao fundo. O desconforto alastrando à barriga das pernas, a brisa inflamando a labareda, impaciente. Ficava no caminho. Fui.


A água ardia nos tornozelos queimados. Não refrescava, não aliviava. Latejava como se os aspergisse com álcool ou com sal. Sal… Banhava-me nas tuas lágrimas enquanto o teu fogo me consumia. E o horizonte ondulado se agitava, num adeus atabalhoado.


Adeus. E porque não?

18 janeiro 2011

PREGUIÇA



esta preguiça indizível deitada em cima de mim

segura-me com a ponta do dedo

de cada vez se ausenta brevemente

e regressa no momento em que me tento levantar

esta lassidão colada à força na vontade

deixa marcas de cola nos sentidos

arrasta pele quando a tento arrancar

faz-me refém dos dias que só querem passar

invisíveis

perdidos

preguiçosos













08 janeiro 2011

RELEVO

Foto: Goreti Ferreira
E ao contrário? Haveria relevo?
Pega na tua vida com ambas as mãos. Como se fosse uma folha de cartolina. Inspira. Expira. Inspira de novo com mais força e enquanto expirares vira a folha de cabeça para baixo. Isso! Agora sobe-lhe para cima e percorre-te do avesso.
Será que as montanhas que se te ergueram são côncavas ao contrário? Cuidado então! Não caias nas profundezas do abismo nos seus inversos. A não ser que as tenhas transposto. E então podes usar uma corda e – como um espeleólogo – descê-las até lhes encontrares o fim que sabes que têm. O fundo à distância milimétrica do que foi um cume. Que o mais ínfimo dos milímetros nos define aí: onde poderíamos ser o que afinal não fomos.
E os abismos que te fizeram sentar à sua beira até saberes o mapa da coragem para os ultrapassar? Os tantos que atravessaste a nado depois de teres chorado um rio que os enchesse? Serão montanhas de cabeça para baixo? Senta-te, de pernas cruzadas. E descobre se te apetece ignorá-las ou enfrentá-las. Inventa um sucedâneo de lágrimas que te permita trepar e escalar.
Sobra a planura. Um deserto liso que aceita passos mas recusa marcas de pegadas. Que acolhe horizontes, desde que os possa colocar todos no mesmo lugar, sobrepostos, como se fossem só um, embora sejam infinitos colados uns aos outros. Um mar calmo sem ondulação, em que a água é agitada, arrefecida, aquecida, chapinhada, mas sempre tão inteira, tão inabalável e tão perfeita que nem as marcas que lhe queremos deixar consente. A planura, o horizonte, a água recompõem-se sempre. Ou será que nunca as conseguiste realmente tocar a ponto de lhes alterar o inverso?
Pega numa esponja, num alfinete e fura-te! Sim! Escolhe uma forma, a forma do que queres ser, usa a imaginação ou o sonho como esboço sobre ti próprio e picota-te. Como na escola primária. Furo atrás de furo, sempre próximos e regulares. Não desistas, não te canses, não penses no que estás a fazer. Faz!
Inspira de novo. Expira. E na próxima inspiração desfaz o teu avesso. Vira-te. Pouco mudou, não te parece? As montanhas e os abismos do passado sempre no mesmo sítio e a planura alvitante do quotidiano esperando-te com o sorriso malicioso de quem sabia que havias de regressar.
Nada o teu último abismo alagado – às vezes consegues enchê-los de suor – e sobe a montanha mais próxima que conseguires avistar no teu horizonte imediato. Sorri à planura. Eu sei que não lhe queres sorrir, que a detestas, mas sorri em desafio!
Lembras-te do picotado? Não me digas como te sonhaste. Não preciso saber a tua forma, desde que faças o que te digo: salta agora do topo dessa montanha para a folha plana, árida e previsível da rotina! Salta! Já!
Na escola primária, depois de picotar pacientemente, obtinhas a forma desejada e o seu vazio no resto da cartolina. Por isso deves sorrir: virada ao contrário, a cartolina tem agora exactamente a mesma coisa de um lado e do outro. Vazio. Resto de ti. Sonho concretizado. Planura maculada.
Mesmo no contrário, relevas tu.

06 janeiro 2011

EU SEI…


Foto: Goreti Ferreira
Eu sei que não foi hoje.
Será amanhã ou depois.
Mas continuo a querer que tivesse sido já ontem.

- Então e.. vais?


O cabelo revolto, o olhar lançado em desafio, a voz sumida. O cheiro dos beijos ainda se sentiria se outro beijo viesse. O suor entretanto seco ainda lhe repousava na pele pronto a misturar-se com gotas novas, esmagadas contra os lençóis desalinhados. Os olhos fechados ainda lhe devolviam realidade, desde que não respirasse.


- Então e… ficas?


A camisa era menos macia do que a pele dela, principalmente quando acordava desejo logo pela manhã. A noite e o sono percorriam-na como as mãos de uma massagista e a pela ficava adocicada e suave. Um beijo no pescoço para a acordar e tinha mel na boca e nas mãos, antes de os corpos se desfazerem em paixão. Vestido dela voltava tantas vezes a adormecer, no seu abraço flexível e frágil.

- Sim.
- Sim…

E o oceano passou a chamar-se saudade, rasgada pelo avião que o galgou. E todas as portas e janelas de cada casa passaram a ter exactamente a mesma vista daquele quarto de hotel em que as manhãs nunca terminaram nem mesmo depois de o Sol se pôr.
Será a ausência de um adeus um tácito «até breve»?


Será amanhã ou depois.
Hoje sei que não foi..
Mas continuo a querer que volte a ser ontem.

02 janeiro 2011

MEMÓRIA

Naquela manhã havia uma indistinção no ar. Gotículas mínimas de inquietude numa bruma seca, porque o dia estava radioso de sol e céu limpo. Não se via um palmo à frente do nariz. Não se via.

Percorreu o corredor em poucos passos, porque já não tinha muitos para gastar, independentemente do comprimento do espaço. Seis portas prometiam, cerradas. Uma fechada há momentos, guardava ainda memória do que era e deixava-se tranquila apoiada na ombreira.

Cinco mistérios, que a mão quis alcançar. Cinco. Obrigam a escolher e dada a economia de passos foi a mais próxima que se apercebeu de que a maçaneta girava. Num gesto de simpatia, abriu-se. Pó. O cheiro a pó chegou antes da obscuridade e da eficiência das lâmpadas incandescentes do lustre imponente. Depois, o clarão e a solidão sentada em cada uma das cadeiras, repartida pelas doze – uma dúzia – num conforto resignado. Quem diria?... A sala de jantar. Esqueceu a luz acesa, móveis e memória iluminados, com destaque para as flores secas do centro de mesa, também elas já tão antigas que mais não eram do que pó não agitado.

De novo a linha longa do espaço de ninguém. E o desafio fechado atrás de outra porta, ávida de exercício, apenas encostada. Quase se abriu antes do toque da sua mão. Quase se recordou do que lá encontraria, talvez pelo odor a restos de lume crepitante, antes das televisões e das parafernálias eléctricas. O aspecto altivo da lareira substituiu-lhe a lembrança da sala anterior e o quadro que a enfeitava devolveu-lhe a mocidade. Faltavam as cartas com as pontas gastas na mesinha de jogo e na poltrona podia repousar ainda um dos seus livros preferidos. Mas não havia livro nenhum fora das estantes. Nem alegria. Nem vida.

Havia dormido no seu quarto nessa noite, sentindo uma falta, sentindo-se em falta. Talvez por isso as três portas que restavam lhe gritassem à curiosidade. Talvez por isso tenha feito um real esforço para empurrar a porta do meio do lado esquerdo, teimosa e empanada, desafiando-o. Os hóspedes hão-de a ter tratado mal. Era um quarto. Encardido de gente, de amigos e conhecidos, de algum necessitado em noite de invernia, que a sorte tivesse guiado até à coberta da generosidade daquela casa. Pó de pele, de cabelo, do respirar alheio. É preciso arranjar a porta. Ou deixá-la sempre aberta, não lhe apeteça regressar.

A falta falava-lhe: «Procura-me, encontra-me, encontra-te! Anda!». E os passos contados regressaram ao intimidante corredor percorrendo-o até às duas portas das pontas. Lá no fundo do escuro que a miopia desfoca ainda mais. Fundo, respirou fundo. Mais fundo, como se adivinhasse a coragem, como se a exortasse. Rangeu - artrítica - nos gonzos a porta do fundo à direita. E cheirou-lhe a cor-de-rosa quando entrou com os olhos fechados e chegou facilmente à janela e a abriu de par em par. Rosa de cor, «Rosa – ai, minha, Rosa! – que aqui te perdi, filha minha, filha da saudade…». E tombou, sucumbindo à memória, encostado à cama demasiado pequena para ter ficado vazia tão cedo, agarrado às bonecas sorridentes com que Rosa quase não brincou.

Não sabe como, mas acordou de novo no seu quarto, que a inquietação enche daquele nevoeiro seco, gasto, que lhe tolda a lucidez e a clarividência. Não foram elas que lhe disseram que faltava uma porta. Foi algo mais inexplicável – talvez o grito constante reverberando no seu íntimo: faltas-te! Busca-te! – mais primitivo. Teve que se apoiar na parede. Agora é assim. De um dia para o outro perde-se. Perde forças, perde memórias, vai-se largando aos poucos porque não se consegue segurar inteiro pelo caminho. Solidária e alva, pontilhada de quadros que não lhe dizem nada, porque não falam, a parede acolhe-lhe a mão e ei-lo diante daquela última porta. À esquerda. Oferecendo-se-lhe. Entrou.

A janela estava aberta, o que não deixava de ser estranho, numa casa completamente às escuras. Sentiu vida, apesar dos livros amarelados, dos brinquedos antigos, de lata. Sentiu ar respirado. Como se ali não faltasse nada. Sentou-se na cama de solteiro, sob a colcha antiga mas lavada e da memória saltou um cheiro fresco a sabão azul-e-branco. E umas mãos molhadas, num corpo jovem, tonificado, debruçado sobre o tanque, esfregando e estendendo a brancura dos lençóis de linho. No fim da memória, um sorriso. Aquele sorriso radioso que nascia sempre que o via, sempre que o pressentia. Aquele sorriso que lhe falta na enorme cama de casal e lhe grita incessantemente na bruma de quem perdeu e se perde todos os dias.

-Pai! O que fazes aqui sozinho? Perdeste-te?

A claridade do quarto. A vida do quarto. A respiração. Num relance, encontrou-se. Na voz do filho, na tristeza das perdas que lhe reconheceu desenhadas nas rugas e nos cabelos brancos precoces. Naquele momento breve de lucidez recordou o acidente que lhe matou mulher e filho, pouco antes do dia em que apareceu no Lar e lhe disse que iam regressar os dois à aldeia, recuperar a velha casa e as vinhas e esquecer o medo e a solidão.

-Anda, Pai. Vamos até à cozinha, que está quente e limpa. A D. Hortense vem hoje fazer o resto da limpeza. E à tarde vamos espreitar as vinhas. Ainda há pouco te deitei para a sesta.Vá! Tens que descansar um pouco agora.

Os passos foram-se perdendo à medida que percorria o corredor de portas descobertas, enrolado no abraço cúmplice do filho. A bruma escapou-se do quarto e – indistinta – adianta-se-lhe inexoravelmente onde quer que seja, até em pensamento.

Só a falta perdeu a força. De grito que era deixou-se ficar sussurro suave, quase doce melodia, soando por entre as vinhas que as suas mãos antigas tão bem conheciam.

Ainda que à revelia da memória.