29 novembro 2011

OS ESPINHOS DA ROSA

Vermelha. Todos os dias vermelha e viçosa. Rua acima, cortando as sombras dos edifícios em jeito de desafio. Ostentando juventude e alegria, um grito em todos os silêncios.

Em silêncio se move. Quase repreendendo a calçada por denunciar as suas idas e vindas. Cedo já é tarde para sair e na pressa os movimentos são ágeis e resolutos. Fica um perfume de mistério pairando no ar frio das manhãs que percorre mesmo de Inverno. Ninguém sabe muito sobre si nem sobre os seus. Que vai e vem. Só.

Rua abaixo, silenciosa, rápida, ágil, quase sem tempo para oferecer ao pensamento porque há sempre tanto a fazer. O rosto escondido na expressão angustiada – é preciso trabalhar, é preciso regressar – e o céu e as nuvens mais distantes do que para todos os outros porque o céu e as nuvens se afastam mais de quem nem sequer olha para eles.

As mãos ocupam-se em movimentos mecânicos, moldados pela rotina. Gastas de uso, o cansaço acumulando-se áspero nos calos. O suor repetindo-se todos os dias. Sozinha e muda, partilhando-se com o silêncio de uma casa e de mais outra e de mais outra, que deixa imaculadas para que outros desfrutem no regresso. Invisível.

No final de cada dia, no resto das limpezas, dinheiro no bolso, saco de supermercado dependurado no braço, comida para a mesa antecipando os sorrisos à espera do jantar (tão maiores do que o céu e as nuvens).

Vermelha, gritando às sombras que àquela hora já se abraçam ao
princípio da noite. Todos os dias, uma rosa se lhe oferece naquele jardim, sobrando da vedação, atravessando-se-lhe no caminho, forçando-lhe o olhar. Sorri e não resiste. Uma flor de espinhos que coloca no cabelo e que lhe canta, viçosa, a alegria silenciosa e furtiva de mais um dia conquistado. E que espalha, lá no bairro, o perfume poderoso da curiosidade.

















01 novembro 2011

À SAÍDA DA PORTA

Fui abrir a porta e não havia ninguém na soleira. O som das batidas enrolou-se numa dúvida e tremi sobre a certeza. Se calhar ninguém bateu. Se calhar…


Regressei à sala temperada de labaredas brincando na lareira e ao livro (ainda com as marcas dos meus olhos naquele parágrafo que me tinha feito arrepiar, como se uma brisa me tivesse soprado sobre a memória transpirada).


O cadeirão - no canto onde a luz é mais doce sob a janela do lado das buganvílias - rejeitou-me. Conhecia o meu corpo e as suas formas de cada noite que ali varei, no seu conforto e na fúria de mais um livro, na paz de tantas melodias. Conheceu um corpo magro, um corpo jovem, um corpo agora anafado, um corpo que se foi ajeitando à idade. Naquele momento, fingia que não me conhecia.


A televisão esforçava-se com artifícios luminosos e oscilações enfáticas de volume. Mas como quase sempre, em vão. Desliguei-a. Talvez assim o cadeirão me aceitasse, me oferecesse o aconchego de sempre, sob o candeeiro que comprei numa daquelas viagens que deveriam ter sido interessantes a qualquer parte do Mundo (mas que não foi).


Voltei à porta, os pés hesitando e adiando o mais que podiam o confronto com a invernia que envolvia o Mundo nessa noite. O vento agreste cortou-os de frio e os olhos que mal se podiam abrir perscrutaram em esforço o exterior mal iluminado (tenho que trocar a lâmpada que se fundiu). Nada. Não se via vivalma.


Nem na rua, nem na sala, onde o velho candeeiro – recordação mal amada– se apagou. Escuridão. E o livro ali pousado, e os dedos que não sabiam senão folhear páginas e a alma que apenas de histórias se alimenta ali: em pausa.


O Mundo parado e eu ali, à espera de luz. A memória da memória não me deixava em sossego. Que a porta tinha dado sinal - que sim! Sim! Sim! - que não era impressão minha e que as aparências iludem. E a escuridão que me desocupava as ideias, que me desconcentrava. E eu ali, vulnerável, com a dúvida martelando as minhas certezas em crescendo e em teimosia.


Mas não. Ninguém do lado de lá da porta de entrada. A frustração assim
vestida de incerteza cansou-me. Encostei-me à porta, deixei-me escorregar. Então senti o teu abraço. Senti-te quente, onda de ternura, o som da tempestade tão perto e tu acolhendo-me na tua paz. Rias de mim do lado de dentro da porta de saída. Já tinhas entrado. Já tinhas desarrumado toda a minha solidão.


Bateste à porta só para eu te encontrar.


Anda, deixa-te ficar. Trago o abraço vazio há tempo demais.