30 maio 2011

FECHO

Puxa o fecho pela ponta e divide-nos. Aprisiona-me do lado de lá do tecido. É macio, elástico mas resistente. Posso sentir-te o cheiro através dele. Consigo perceber-te o volume e quero abraçar-te. Mas o fecho está corrido mesmo até ao cimo da vida, até ao horizonte do pano que nos separa as vidas. E os horizontes, para o não deixarem de ser, estão sempre um pouco para lá do nosso alcance.


Não chego lá. Ao fecho. Puxaste-o com firmeza. E agora sou uma forma que distingues com o tacto e completas de memória com a lembrança da boca que se entreabre, húmida. Da língua que se te oferece, quente, adivinhando-te o desejo. Do beijo que se rouba e que podia estar gasto, de tão imaginado, de tão ansiado de tão infinitamente repetido no desejo e tão parcimoniosamente trocado. E agora não queria que o tivesses fechado.


Encravaste-o. Vês o pano agitar-se com o barulho do meu desespero? Quase se quebra a moldura dessa tela tão atroz, que me fere o orgulho e me enlouquece de impossibilidade. Um «quase» maldito, inteiro, que não cede e resiste e não se esvazia do significado. Que me deixa exausta, mãos já molhadas das lágrimas que não contenho e te querem também em soluços convulsivos, num choro sonoro, interminável.


Do lado de cá as mãos em sangue dilaceram o metal, lutam com a ironia escorregadia dos dentes que entrelaçados – juntos!!! – ajudam a manter-nos separados. E o sangue diluído de lágrimas tinge-me a sola dos pés e arrasta-me a alma. Mecânico, o desespero esquece-te. Concentra-me no meu medo, na minha incredulidade e faz de mim ruído, quase só barulho sem noite, sem dia, sem descanso na solidão. Grito e lamúria, raiva e pena: tudo o que sou.


Um dia a ira despediu-se. Logo pela manhã. Estava farta de mim. A pena deu-lhe a mão e poupou-se às despedidas. Vazia fiz-me silêncio e imobilidade. Deixei-me. E então percebi um movimento ligeiro, do lado de lá. Do teu lado. Senti que respiravas, suavemente. Que repetias um murmúrio incessantemente:


«Foi sem querer que encravei o fecho, quando me pediste para o correr até ao cimo. Foi sem querer…»


O tecido era inultrapassável, mas elástico e permitiu o abraço e o cheiro. Deixou beber-te as lágrimas e sentir o odor da tua pele. E falar. Horas infinitas sobre o lado de lá, o lado de cá e a impermanência da vida. Perto, mas não unidos.


Um dia – lembras-te? - assustados enquanto dormíamos, colados ao nosso limite, sentimos que algo caiu. Os dentes que nos separavam (fecho maldito) enferrujaram. E do pano dividido em dois fizemos um lençol. Para a cama que nunca mais deixámos de partilhar.

4 comentários:

Filoxera disse...

Costumo dizer que as palavras valem o que valem.
As que escreves são fortes. Combinadas de forma poderosa. Sempre bonita.

Mar Arável disse...

Excelente viagem

pela vida

onde nem sempre as portas estão abertas
e se torna necessário subir
às janelas escancaradas

Nilson Barcelli disse...

Neste texto, está bem patente a tua enorme criatividade. Sim, és uma criativa... ninguém conta assim uma história... só tu...
Gostei imenso. Mesmo...
Querida amiga G., bom Domingo.
Beijos.

OUTONO disse...

Poderia dizer ...faço minhas as palavras do Nilson...mas sempre configuro ainda mais uma certeza...quando editares, oxalá não seja tarde. Estou Há imenso tempo na livraria para comprar o teu livro...mesmo que não o ofereças, nem o queiras autografar...
Beijo