01 novembro 2011

À SAÍDA DA PORTA

Fui abrir a porta e não havia ninguém na soleira. O som das batidas enrolou-se numa dúvida e tremi sobre a certeza. Se calhar ninguém bateu. Se calhar…


Regressei à sala temperada de labaredas brincando na lareira e ao livro (ainda com as marcas dos meus olhos naquele parágrafo que me tinha feito arrepiar, como se uma brisa me tivesse soprado sobre a memória transpirada).


O cadeirão - no canto onde a luz é mais doce sob a janela do lado das buganvílias - rejeitou-me. Conhecia o meu corpo e as suas formas de cada noite que ali varei, no seu conforto e na fúria de mais um livro, na paz de tantas melodias. Conheceu um corpo magro, um corpo jovem, um corpo agora anafado, um corpo que se foi ajeitando à idade. Naquele momento, fingia que não me conhecia.


A televisão esforçava-se com artifícios luminosos e oscilações enfáticas de volume. Mas como quase sempre, em vão. Desliguei-a. Talvez assim o cadeirão me aceitasse, me oferecesse o aconchego de sempre, sob o candeeiro que comprei numa daquelas viagens que deveriam ter sido interessantes a qualquer parte do Mundo (mas que não foi).


Voltei à porta, os pés hesitando e adiando o mais que podiam o confronto com a invernia que envolvia o Mundo nessa noite. O vento agreste cortou-os de frio e os olhos que mal se podiam abrir perscrutaram em esforço o exterior mal iluminado (tenho que trocar a lâmpada que se fundiu). Nada. Não se via vivalma.


Nem na rua, nem na sala, onde o velho candeeiro – recordação mal amada– se apagou. Escuridão. E o livro ali pousado, e os dedos que não sabiam senão folhear páginas e a alma que apenas de histórias se alimenta ali: em pausa.


O Mundo parado e eu ali, à espera de luz. A memória da memória não me deixava em sossego. Que a porta tinha dado sinal - que sim! Sim! Sim! - que não era impressão minha e que as aparências iludem. E a escuridão que me desocupava as ideias, que me desconcentrava. E eu ali, vulnerável, com a dúvida martelando as minhas certezas em crescendo e em teimosia.


Mas não. Ninguém do lado de lá da porta de entrada. A frustração assim
vestida de incerteza cansou-me. Encostei-me à porta, deixei-me escorregar. Então senti o teu abraço. Senti-te quente, onda de ternura, o som da tempestade tão perto e tu acolhendo-me na tua paz. Rias de mim do lado de dentro da porta de saída. Já tinhas entrado. Já tinhas desarrumado toda a minha solidão.


Bateste à porta só para eu te encontrar.


Anda, deixa-te ficar. Trago o abraço vazio há tempo demais.

5 comentários:

Mar Arável disse...

Excelente viagem

Também já me aconteceu com o vento

Abri as portas escancarei as janelas

e o vento entrou e saíu
sem rasto

Filoxera disse...

Um post lindo, com um final encantador...
Beijos.

OUTONO disse...

..."abraço vazio"

só a tua pena o sabe escrever.

Nilson Barcelli disse...

E como é bom que alguém nos desarrume a solidão. Ainda que ela seja anafada...
Gostei imenso do teu texto. A tua narrativa, desta vez, é cinematográfica (eu fazia um filme muito facilmente com as tuas palavras).
Querida amiga G., tem um bom fim de semana.
Beijos.

M(im) disse...

Obrigada pelas palavras sempre agradáveis.
O tempo tem faltado para vir até estas paragens que tanto prazer me dão.
Obrigada amigos.
Um beijinho