12 setembro 2010

BORRACHA MACIA


Quero encerrar-nos num abraço, trancar-nos com um beijo e apagar o mundo à nossa volta com uma borracha macia, daquelas brancas que vão ficando pequeninas do uso. Que me importa que o céu fique esborratado, que o mar fique sujo da cor do céu e que os campos se transformem num borrão indistinto? Quando a borracha ficar gasta, compro outra. E volto a apagar tudo o que nos rodeia até me doer o pulso. Até o céu ser branco porque deixou de existir, até o mar passar a ser só o sítio onde ondulava e até os campos secarem e se calarem os gritos das papoilas. Até esquecermos que existiu um sol.

Nesse momento… serás beijo e abraço em mim, beijarás com desvelo o pulso com que afanosamente apaguei a realidade. A mão desse pulso procurará a tua, para te levar, para te guiar quando o abraço tiver que afrouxar e as bocas forem beijo cansado e pedirem pausa. Não me negarás e a tua alma estará com a minha, no desejo de caminhar, de nos construir, de podermos ser. De olhos erguidos perscrutaremos o horizonte em busca de rumo. Que não existirá. E sentirei o pulso latejar.

Uma folha, quatro cantos, tu e eu encurralados na ausência de direcção. Sem estrelas para norte, sem céu para horizonte, sem mar para navegar, sem mato para desbravar. Em bicos de pés – abraçados – numa folha de papel frágil, amarrotada e sem futuros. Seremos perpetuamente o presente que desejamos e que nos poderemos ofertar: corpo e desejo, selados num beijo. Encarcerados num momento, alheios ao mundo e ao seu movimento.

Avistar-te-ei num dos cantos, sentado, ainda mal acordado e pensando que no canto oposto o sono ainda me seduz. Em busca de nós no branco descarado da folha. Notando que o papel se torna quebradiço sob os nossos pés, por mais que nos sintamos levitar num estado de amor total e completo. Sentirás medo. Porque em lado algum encontrarão vestígios de ti, se a folha se rasgar, se ceder ao nosso peso, se o abismo nos engolir.

Ficarei desperta para o teu olhar. Mesmo quando os teus olhos estiverem fechados – principalmente quando os teus olhos se esconderem dos meus sob as pálpebras cerradas. Sempre que o teu peito me cantar o som descompassado do teu coração num abraço. Sempre que nos desfizermos no molhado de um beijo. Sentirei o teu olhar no abismo – porque é abismo tudo o que não conhecemos e eu terei apagado tudo o que podíamos conhecer. E todos os caminhos do sonho.

Um dia o teu olhar será um adeus presente. Será uma lágrima não vertida, um oceano que me inundará a cada beijo, que devolverei no auge do desejo, depois de me ter afogado em ti e quase ter desejado morrer assim. Será um abraço mal dado, um corpo mal tocado, como um piano desafinado que mesmo com a partitura certa não devolve a melodia sem uma ponta de ironia. Um dia, ser-me-ás infiel. Ou eu a ti, na verdade branca e imponente de uma folha de papel gasta e frágil. Ainda que só no sentimento.

O futuro apaga-se, mas não o tempo. E os dias chegam sempre, mesmo que se lhes peça para esperar. O dia chegará. Aquele em que o vazio de horizonte será mais forte do que o conforto da segurança. Em que a paixão se mudará de armas e bagagens para a casa da memória. Em que a pele doente de Alzheimer não se lembrará já do apelo obrigatório do avesso do outro. Nesse dia pisaremos forte e rasgaremos a folha.

Não te aperceberás antes do fim, mas terás menos um centímetro de papel do que a medida padronizada. Não se notará, porque o branco exclui os limites e apaga as sombras. Mas no dia do teu abismo, quando o teu olhar – então sempre diagonal – me disser que se prepara para se lançar… desenhar-te-ei uma porta, com o lápis que o centímetro a menos sempre ocultou. E o beijo que te darei será o último. E não terei forças para o abraço derradeiro sem te implorar que fiques. Por isso não o terás.

Quando fechares a porta – não resistirás ao apelo de te oferecer ao sol e banhar no mar e correr nos campos e olhar as nuvens no céu…– pedir-te-ei apenas que me deixes a borracha. Para apagar a porta que não usarei. E o teu abismo. Para me perder nele para sempre. Se tiveres saudades – um dia qualquer, porque os dias quaisquer também chegam sempre – fiquei com o lápis. Procura a página virada. Estaremos lá escritos.

8 comentários:

Mar Arável disse...

Muito belo

Bj

M(im) disse...

Obrigada.

Beijinho

Ana Luar disse...

Adorei este belíssimo post.... acredito que todos já tenhamos desejado reinscrever uma história que um dia tenhamos apagado....... mas será que temos lápis suficiente para que ela volte a ser tão perfeita?

Nilson Barcelli disse...

A tua criatividade é espantosa... ainda estou para descobrir como é que tu descobres contextos como este.
Brilhante, querida amiga. Arrasaste mais uma vez...
Beijos.

Aquarela disse...

Obrigada pela visita la em casa :)... eu adorei conhecer o seu blog, escreve divinalmente!
Muitos parabéns
Vou voltar!
um abraço

PRECIOSA disse...

Lindo, seu texto...
Que a borracha e o lapiz nunca se separem, para que se esse amor apagar possa com o lapiz refazer a escrita da paixão...
Ah! senti emoção em seu comentário muito carinhoso....em visita no meu blog.
Fiques com DEUS...
Tenhas um dia regado de muito amor..

Beijinhos..
Preciosa Maria

Filoxera disse...

FABULOSO, este post!
Li-o com um leve aperto na garganta, a par dum brilho nos olhos, encantados pela onda romântica e sensual.
Parabéns!

M(im) disse...

Filoxera: obrigada.
Se te tocou... fico feliz!
Beijinho