08 dezembro 2010

PAPEL QUÍMICO


Químico. O amanhã.
Desenhado na folha branca de hoje. Com uma folha fina coberta de pó negro de um dos lados por baixo. Faz barulho ao ser retirada da caixa em que se compram muitas. Servem para duplicar os dias. Porque tem que haver sempre mais um senão não havia amanhã.
Químico. O hoje.
Esqueci-me que nos amanhãs se tem que andar sempre com pezinhos de lã. E apeteceu-me dançar, correr, saltar e derrapar sem pensar em mais nada. Até fiz o pino! E então vi as mãos mascarradas. Parei de saltitar sobre o borrão em que transformei o meu dia. Os traços do papel químico são frágeis. Não suportam euforias.
Químico. O depois.
Este hoje é indistinto. Não sobraram riscos inteiros de ontem para repetir, para duplicar com a mão firme de quem repete um desenho pela milésima vez. Passou a mancha que sobrou da minha alegria imprudente. Sombras e nuvens desordenadas. Nenhum começo e nenhum fim. Hoje, nem alegria, nem rumo. Só um quase nada. E eu.
Químico. Para sempre.
Estão-se a acabar as folhas de papel químico. As que já foram usadas deixam falhas mesmo sob os traços firmes de régua, mesmo sob a fúria da esferográfica. Tornam os dias seguintes cada vez mais imperfeitos. Com hiatos nos momentos importantes, com ausência de momentos importantes. Mas não compro outra caixa. Um destes dias ganho coragem e deixo o próximo dia em branco. Em vez de desenhar o depois, tento ver-me no antes.
Químico. Ou talvez não.
Talvez me reconheça.
Talvez renasça.  

4 comentários:

Mar Arável disse...

Texto muito bem elaborado e profundo
a deixar marcas também nos que o lêm
pelo menos a mim que de escarpa em escarpa sempre ma fascinei com o ciclo das marés
sem abdicar do mau barco de papel
quimico

Mar Arável disse...

Não é mau

é meu
Bj

Filoxera disse...

Angústia num post lindo.

Faz-me lembrar um texto que não publiquei:
"Não te sei, hoje…
Sabes que não sairás de mim.
Desde o momento em que me vesti de ti, ficaste.
Moras em cada poro, respiras cada fôlego meu, és fonte de lágrimas, foz da dor que me acompanha.
E és a origem do sorriso com que brindo cada dia, lençol onde me deito a sonhar.
Mas hoje não consigo sentir-te.
não há acordes de piano a vibrar dentro de mim, nem risos de crianças que me apaixonam pelos instantes da vida.
Está um silêncio opaco que não me permite ver-te.
Há uma chaga indizível, como se me tivessem lancetado o coração.
Sem nome. Arrepiante.
Porque hoje não te sei."

Beijos.

Virgínia do Carmo disse...

Uma metáfora muito bem conseguida e transposta para as palavras com imensa sensibilidade.

Um abraço