08 janeiro 2011

RELEVO

Foto: Goreti Ferreira
E ao contrário? Haveria relevo?
Pega na tua vida com ambas as mãos. Como se fosse uma folha de cartolina. Inspira. Expira. Inspira de novo com mais força e enquanto expirares vira a folha de cabeça para baixo. Isso! Agora sobe-lhe para cima e percorre-te do avesso.
Será que as montanhas que se te ergueram são côncavas ao contrário? Cuidado então! Não caias nas profundezas do abismo nos seus inversos. A não ser que as tenhas transposto. E então podes usar uma corda e – como um espeleólogo – descê-las até lhes encontrares o fim que sabes que têm. O fundo à distância milimétrica do que foi um cume. Que o mais ínfimo dos milímetros nos define aí: onde poderíamos ser o que afinal não fomos.
E os abismos que te fizeram sentar à sua beira até saberes o mapa da coragem para os ultrapassar? Os tantos que atravessaste a nado depois de teres chorado um rio que os enchesse? Serão montanhas de cabeça para baixo? Senta-te, de pernas cruzadas. E descobre se te apetece ignorá-las ou enfrentá-las. Inventa um sucedâneo de lágrimas que te permita trepar e escalar.
Sobra a planura. Um deserto liso que aceita passos mas recusa marcas de pegadas. Que acolhe horizontes, desde que os possa colocar todos no mesmo lugar, sobrepostos, como se fossem só um, embora sejam infinitos colados uns aos outros. Um mar calmo sem ondulação, em que a água é agitada, arrefecida, aquecida, chapinhada, mas sempre tão inteira, tão inabalável e tão perfeita que nem as marcas que lhe queremos deixar consente. A planura, o horizonte, a água recompõem-se sempre. Ou será que nunca as conseguiste realmente tocar a ponto de lhes alterar o inverso?
Pega numa esponja, num alfinete e fura-te! Sim! Escolhe uma forma, a forma do que queres ser, usa a imaginação ou o sonho como esboço sobre ti próprio e picota-te. Como na escola primária. Furo atrás de furo, sempre próximos e regulares. Não desistas, não te canses, não penses no que estás a fazer. Faz!
Inspira de novo. Expira. E na próxima inspiração desfaz o teu avesso. Vira-te. Pouco mudou, não te parece? As montanhas e os abismos do passado sempre no mesmo sítio e a planura alvitante do quotidiano esperando-te com o sorriso malicioso de quem sabia que havias de regressar.
Nada o teu último abismo alagado – às vezes consegues enchê-los de suor – e sobe a montanha mais próxima que conseguires avistar no teu horizonte imediato. Sorri à planura. Eu sei que não lhe queres sorrir, que a detestas, mas sorri em desafio!
Lembras-te do picotado? Não me digas como te sonhaste. Não preciso saber a tua forma, desde que faças o que te digo: salta agora do topo dessa montanha para a folha plana, árida e previsível da rotina! Salta! Já!
Na escola primária, depois de picotar pacientemente, obtinhas a forma desejada e o seu vazio no resto da cartolina. Por isso deves sorrir: virada ao contrário, a cartolina tem agora exactamente a mesma coisa de um lado e do outro. Vazio. Resto de ti. Sonho concretizado. Planura maculada.
Mesmo no contrário, relevas tu.

7 comentários:

PÉTALA disse...

G
Do avesso ou do direito ler-te é um prazer em relevo
O teu exercício de escrita leva-nos a uma reflexão do nosso íntimo nem sempre revelado
Muitas vezes o melhor é o que fica por contar
Conta-nos tudo...
Aromas de
PÉTALA

Nilson Barcelli disse...

A vida é feita de precipícios, de montanhas, mas também de planuras. Não há volta a dar.
Excelente texto, querida amiga. Gostei muito.
Beijos.

Mar Arável disse...

Um belo exercício de espelhos que se olham numa folha de papel
em branco
Excelente

FlorAlpina disse...

É sempre bom ler os seus escritos!

Bjs dos Alpes

Nilson Barcelli disse...

Vim à procura de mais inspirações... reli... e gostei ainda mais.
Querida G., boa semana.
Um beijo.

M(im) disse...

Pois.... saudade.beijo

Nilson Barcelli disse...

Volta, estás perdoada...
Beijo.