02 fevereiro 2010

ESPONJA


Estava em repouso no fundo do mar. Arrancada, violentada do seu lugar, viu-se mais uma de muitas, sentido ascendente, em direcção a uma luz brilhante e seca. Um solavanco inopinado da bicicleta e ei-la, projectada de encontro ao chão. Um pneu despojou-a da água que continha. E descobriu que não se quebrara, que podia ser leve. Tão leve que qualquer brisa mais atrevida, treinando o seu soprar, a podia deslocar. Rebolando sobre si própria, de vento em vento. De vida em vida. Seca. Vazia, de olhos fechados, com medo da próxima viagem, apesar de se saber flexível e inquebrável.

Vagueou durante quase todo o verão, já feliz com o corpo leve, ágil, sem forma. Olhos abertos em cada viagem, aprendendo o mundo, aprendendo as gentes, as vidas, como as crianças: numa alegre brincadeira. Os pólenes, as folhas secas, companheiros de brincadeira, seguiam-na na deriva da ventania. O tédio vinha só com os dias quentes, quando as brisas preguiçosas não apareciam, forçando-lhe a imobilidade.

Naquela manhã o céu estava diferente. Nuvens escuras – segredaram-lhe os pólenes, com voz grave e tensa. Pode vir chuva. Chuva? O que é chuva? Água em gotas, responderam as folhas secas. Água em gotas… E um redemoinho fê-la girar no ar, cúmplice, em jeito de consolo.

A primeira caiu fria, espalhou-se-lhe para o interior e percebeu que tinha sede. Soube-lhe bem. Não estranhou a segunda, nem a terceira, de bom grado as recebeu. Então isto é a chuva? Sabe bem! Sentiu saudades de se sentir molhada, imersa, plena e imóvel. E ofereceu-se às bátegas que a ensoparam, felizes pela recepção calorosa. As nuvens, aliviadas, afastaram-se e procurou os pólenes e as folhas secas, companheiros de descobertas. Estava densa, orgulhosa da sua capacidade de absorção. Abraçavam-se, inconsoláveis, numa união forçada.. As gotas haviam formado uma enxurrada, arrastando os pólenes e desfigurando as folhas, quebradas no chão, nervuras expostas numa montra de tristeza. Mudos. Viu-se só, preenchida, mas só. Ali ficou, chorando lágrimas sem saber, mesmo depois de adormecer.

Sonhou com o leito tropical onde nasceu, com a ondulação suave que a embalava para dormir e com a dança da luz, tentando alcançá-la lá no fundo. A textura da areia áspera não a feria, mas fazia-lhe cócegas quando as correntes a deslocavam, junto com as suas amigas. Não conhecia a solidão.

Acordou sentindo-se projectar numa rabanada de vento, resto do temporal do dia anterior, certamente. Havia secado. E, vazia de água e de companhia, descobriu a saudade. Desejou ardentemente regressar a casa, onde não havia aventuras extraordinárias, mas onde podia ver o bailado dos cardumes e o deslizar sereno dos tubarões pelas águas pouco profundas. Nem chorar podia, de seca que estava. Ouviu vozes e sentiu uma pequena mão elevá-la no ar. Depois foi a escuridão total e o pânico Sentiu-se apertada num sítio quente e apercebeu-se de um movimento, como o da bicicleta do seu raptor. O que lhe teria acontecido? Para onde a levavam? Como queria voltar a casa….

Sorriu, imitando os sorrisos e as gargalhadas do menino, enquanto lhe esfregava as costas e as pernas encardidas de brincadeira. A mãe segurava-a na mão, espremia-a com cuidado, passava-a com desvelo pelo corpo do filho. Pura sorte… encontrou uma família. Mas as folhas e os pólenes…

Descobriu mais tarde – quando envelheceu e se deteriorou – que na natureza, nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma. Numa espécie de reencarnação. Que abraçou com um sorriso, chegada que foi a sua vez.

Um comentário:

cristal disse...

Olá G...

Tão bonita esta esponja impregnada de gotas de ternura cheirando a maresia...

Belo o momento!
(e...olha, digo-te em segredo que gosto do teu escrever)

Beijinho