14 fevereiro 2010

A LUZ DA RUA

Àquela hora a rua parecia mais deserta e densa no seu fluir. A beata do cigarro lembrava à escuridão que alguém a atravessava, discretamente, como se não quisesse ser visto. A tarde parecia-lhe agora muito mais luminosa, talvez pelo contraste com o negro da noite. E, apesar disso, o brilho era-lhe cada vez mais confortável. Brilhante, a tarde... em todos os aspectos. Pareceu-lhe rever-se num espelho um pouco menos traiçoeiro numa vida em que nada é o que parece ser!


O eco dos seus passos deveria fazer-se sentir, mas não fazia. Mais porque quase levitava do que pelo facto de a sola dos sapatos ser de borracha. O mais estranho era, no meio da impenetrabilidade da noite escura, recordar-se tão bem da claridade absurda daquela tarde quando, de dentro da casa só havia olhado de relance para a rua, através da janela aberta... Olhou apenas fugazmente para algo quando, em geral, a preocupação em observar, avaliar e processar a informação era mais que uma necessidade, era um modo de vida. Mas a impressão da 1 luminosidade era teimosa, insinuante, descaradamente invadindo a sua tranquila forma de estar apagado no mundo…

Sentia-se ofuscado na tentativa de digerir o irreal, o inusitado, o impossível. Tentava recordar-se das palavras geradas entre gestos lânguidos, no desnudar de um carinho quase pecaminoso, desajustado, como se as árvores ostentassem estrelas em vez dos seus frutos, num non sense óbvio, agressivo. Procurou olhar melhor para as estrelas pendendo dos ramos que o inverno despiu, mas fechou os olhos, fugindo ao confronto da luz que emanavam, tal qual a luz diáfana que aos poucos parecia dispersar-se como se de nevoeiro se tratasse. Pareceu-lhe ver, de olhos fechados, um vulto...

Acendeu outro cigarro, enquanto as solas de borracha silenciosa o levavam para lado nenhum, ao longo das ruas molhadas por uma chuva que parecia não o atingir. A ponta incandescente queimou um pouco mais da escuridão e pareceu ajudar a dispersar a bruma luminosa que lhe toldava o espírito. Reconheceu, para além daquela, algo mais... Cerrou as pálpebras vigorosamente, como que para garantir absoluta privacidade para o encontro do seu olhar com o dela.

Começava a duvidar que a luminosidade que atribuíra à tarde lhe pertencesse realmente, à medida que, no encontro, se tornavam nítidos os contornos, a cor, o sentimento contido na expressão... o vermelho intermitente denunciava a sua tensão, descarregada no cigarro. A ausência de luz escondia confortavelmente o sorriso soltando-se-lhe dos lábios, ao recordar a luz que o olhar dela emprestou àquela tarde e ao seu próprio ego -esquecê-lo-ia algum dia?

Ganhou coragem, ousou tocar de novo o corpo nu, percorrendo-o com a veneração da primeira vez, mas sentindo ao mesmo tempo que o conhecia de sempre, como se tivesse cada contorno, cada imperfeição, cada recanto perdido, guardado numa espécie de memória do futuro... Sentiu-lhe o cheiro, absorvendo-o em inspirações vigorosas, soltando-o lentamente, junto com o fumo do cigarro...

A luz roubada pela tarde perdeu o charme, devolvida que teve que ser à proprietária do sorriso, aquele que, junto com o olhar, lhe iluminou o caminho até um espelho mais fidedigno, menos distorcido, reflectindo de si as coisas que não conhecia e as que não queria dar a conhecer.

O enésimo cigarro acendia-se de novo, ferindo a noite com a sua ponta incandescente. Os sapatos de sola de borracha continuavam a levá-lo silenciosamente para um destino incerto. E a noite, companheira, continuava a esconder o sorriso que teimava em animar-lhe o rosto...

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