14 fevereiro 2010

O ARQUIVO

A multidão apinhava-se nas imediações. O eco dos sussurros alastrava lentamente. Os gaiatos, traquinas, furavam por entre as pernas anónimas e aproximavam-se do portão.


Chegou um carro preto. Enorme. Reluzente. Um luxo! De lá saíram dois homens enfiados em fatos pretos, distintos. Barba e bigode, pasta na mão, um deles olhou para o relógio. Será que esperavam alguém? Cinco minutos depois chegou o camião. Coisa enorme, jamais vista na aldeia.

O do bigode furou a custo por entre a multidão, seguido pelo outro, muito preocupado com a lama nos sapatos espelhados, de verniz. Gente da alta! Sacou da chave e tentou abrir a porta, pesada, forte, do velho casarão.

O "Casarão dos Fantasmas" - era assim que as gentes lhe chamavam - era o centro da curiosidade da população. Há décadas - séculos - desabitado, ninguém fazia ideia dos seus donos ou moradores. Constava na aldeia que o último habitante fora um velho muito rico. E diziam que o velho fechou a porta e as janelas e se matou. Que o seu fantasma toma conta do casarão há séculos. Por vezes, ouviam-se ruídos estranhos vindos lá de dentro. A Isaura do Almerindo jurava que já ouvira quando passara por lá à meia-noite, numa sexta-feira qualquer. passos e gritos,

As trepadeiras já haviam tomado conta das paredes outrora alvas de cal. Os vidros das janelas, rachados e rotos, serviam de instrumento que o vento tocava em noites de invernia. O jardim eram silvas amontoadas, que se avistavam por entre as grades do portão principal, entre um muro alto e rachado, impenetrável. O casarão, de dois andares, era imenso, grandioso. E, contudo, inexplicavelmente abandonado.

A chave teimava em não entrar na fechadura, e logo os populares encontraram pretexto para apostar: "Um copo de três em como o raio da chave não abre a porta!". A curiosidade acelerava as batidas dos corações. Anos, em alguns casos, vidas, de curiosidade, de convivência com o "Casarão dos Fantasmas": a chave tinha que abrir!

Do camião, saiu um homem de fato-macaco, com qualquer coisa na mão. Passo apressado, rapidamente furou a curiosidade amontoada e chegou junto do homem de barba e bigode. Volta para aqui, volta para ali, um pontapé e... alguém ganhou um copo de três: a chave não abriu. Mas a porta cedeu ao pontapé e estatelou-se no chão, levantando uma nuvem de pó. O do bigode tossia, sacudia-se freneticamente; sacou do lenço alvo e colocou-o sobre o rosto, por causa da alergia.

A porta traseira do camião – enorme - abriu-se de par em par e de lá saíram vários homens, de fato-macaco verde. Juntamente com os dois finórios e o outro (o do pontapé), penetraram na escuridão.

Carregaram de tudo, devidamente embrulhado em teias dearanha, supostamente seculares: mesas, cadeiras, móveis, um piano, bustos, candeeiros, quadros... Em meia dúzia de horas levaram tudo o que quiseram. "Foram à falência!", diziam uns. "O herdeiro vendeu a casa!", garantiam outros. Fosse o que fosse: à tardinha estava tudo acabado.

A fechadura do portão, de novo fechada a sete voltas, teria resistido a mil assaltantes, mas foi impotente perante a curiosidade popular coleccionada durante anos - vidas inteiras! A casa e as teias de aranha foram violadas pela segunda vez no mesmo dia. Para gáudio da pequenada, sobraram livros amarelados com desenhos diferentes, coloridos; antigos brinquedos empoeirados e bonecas! Bonecas... As mulheres, histéricas, gritavam e berravam na cozinha, tentando açambarcar os melhores tachos, panelas, pratos...

Mas... o mistério estava no escritório, junto à lareira, sobre a qual a mancha quadrada de tinta não desbotada -memória de um quadro que ali descansou – provava ter tido muito uso. Não tinha chave, mas tinha uma série de gavetinhas com fechadura. Parecia... um arquivo! Era um arquivo! Fechado à chave! Não havia esqueletos no casarão, nem fantasmas: havia algo ainda mais misterioso, um arquivo! Num piscar de olhos, surgiram centenas de chaves saídas dos bolsos dos inquietos coscuvilheiros. Nada, nem uma servia! Dormiram sobre a curiosidade. Será que conseguiram dormir?

Na manhã seguinte, o Jerónimo -o único que tinha um cavalo na aldeia, largou a galope até à vila mais próxima. Trouxe consigo o serralheiro, que passou horas em redor das minúsculas fechaduras. Infrutiferamente. Nem sempre resulta, mas foi a solução: algumas marteladas vigorosas e a madeira do fundo cedeu!

O que continha o enigmático arquivo? Talvez a resposta a décadas – séculos - de mistério em torno do dono da casa. Papeladas, por certo. E importantes, decerto, caso contrário não estaria fechado à chave.

Na primeira gaveta, nada! Decepção suprema! E nas restantes? Cartas. Cartas de amor! Amarelecidas, contendo frases de estrutura e palavras estranhas e sentimentos amarelecidos, empoeirados, embolorados. Só cartas. Ah! E um livro de poemas, manuscrito, em cima de um diário atado com um laço cor-de-rosa...

Entre as páginas do diário, uma rosa amarelada - quem sabe outrora púrpura - que escondia parte das palavras cuidadosamente transpostas, com letra enrolada e harmoniosa, para o papel: "Sinto que o nosso amor é eterno. Nosso, mas tão belo, que tem que ser também do mundo. Como gostaria que todos soubessem o que sinto! Cada página deste diário é par mim uma multidão com quem partilho a minha felicidade!". Parecia que a rosa fora colocada ali propositadamente, para que todos soubessem... Como se a sua autora soubesse que...

Ofélia: o único nome descoberto após a ávida e cuidadosa análise de todas as cartas, poemas e do diário. Ofélia... Papéis amarelecidos, mas sentimentos vivos, eternos. Tudo, menos embolorados. E finalmente conhecidos de todos...

Longe de decepção, o arquivo fecundou novas lendas. O Casarão dos Fantasmas", é agora a "Prisão de Ofélia": uma donzela apaixonada, que ali foi encerrada e que era feliz escrevendo cartas de amor a um homem sem nome, nascido da sua imaginação...

5 comentários:

cristal disse...

Deliciosa esta história!
Que prende a atenção do princípio ao fim.
Que se pode "sentir" como assistindo a um filme...daqueles antigos.

Gostei muito,mesmo!

Beijinhos
e

Boa semana

M(im) disse...

:-)
às vezes as palavras ficam com vergonha das emoções...
Achas que num OBRIGADO descortinas tudoo que quero dizer sem que elas me obedeçam?
És linda!
Beijo grande

mariam [Maria Martins] disse...

G...

Tenho estado a 'ler-te'... d'empreitada :)
imensa é a tua criatividade!

Faço minhas as palavras da Cristal, o teu escrever daria bons guiões para filme ... quem sabe??

E a janela e palavras d'arriba são deliciosas!

deixo-te um molho de sorrisos amigos :)

mariam

M(im) disse...

Um obrigado terá que chegar para retribuir as tuas palavras porque... preciso das outras para escrever mais! LOL
Agora a sério, os sorrisos estão na minha jarra preferida, em cima da mesa da sala. Olho para eles frquentemente: contagiam. Porque são lindos, como tu!
Beijo amplo, cheio de prateleiras e gavetinhas, para lá caberem muitos momentos doces e amigos
G

Anônimo disse...
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