25 janeiro 2010

PORQUE



Porque… Chove uma frase, fica na ideia, pequena e leve, sem incomodar. Perante um teclado, começa a estalar, como se gritasse por liberdade. Só umas palavritas, tamborilando na memória. Mas no papel, no ecrã do computador, já são locomotiva, arrastam uma história, um enredo sempre espontâneo onde irrompem personagens roubadas ao presente e aos passados, moldadas sem pudor ou premeditação. Deixam de ter autor quando fogem para a trama, quando a traçam a seu bel-prazer, usando-me só como veículo para um destino incerto.
Imagino-me uma esponja, sob a chuva miudinha, inchando lentamente, até ao ponto em que a capacidade de absorção se esgota e o excesso se solta inexoravelmente: a água busca um caminho, segue o seu rumo. Liberta do peso, não me sei afastar, e continuo à mercê das gotículas pequeninas, de alegrias e tristezas, ansiedades e certezas alheias, que se impregnam, que se entranham e encontram espaço em mim. Sinto vidas em paralelo. Muitas. Ora permanecem, ora me atravessam, mas deixam sempre rastro, sinais do caminho que levam – doces, os felizes. Pesam as pegadas turbulentas, ficam fundas e não se deixam cobrir dos sorrisos da minha vida feliz.
E então…. Um papel, um teclado, uma frase já irritante que conquista alforria: sem as destruir, aliso as marcas alheias, ofereço-as. Vingo-me inconscientemente, misturando-as, roubando-lhes os dramas, as experiências, as alegrias e os êxtases, atiradas que são para uma folha, onde as posso ler, entender, até reviver, à distância segura de quem não tem que continuar a senti-las.
Porque… Preciso de espaço para mim, para além dos restos dos outros. Para o excesso de mim própria. Um só corpo, uma só vida não chegam! Como, se sinto em paralelo? Se por detrás da energia, da alegria, do sorriso – genuínos – intuo a apatia, a tristeza, as lágrimas que não tenho porque derramar? Como se estivesse cheia de entrelinhas, como se uma sombra se soubesse esconder tão bem de dia como de noite, colada às minhas costas, opaca.
Ao entardecer, num espelho de águas calmas, uma montanha divide-se em duas. Mal se distinguem, se a brisa não se intrometer e denunciar a imagem reflectida. Original e reflexo... Duas imagens tão iguais, tão intrinsecamente diferentes. Uma é certeza. Está no seu lugar, tem a responsabilidade de aí permanecer, suporta tudo, suporta vida. A outra, superficial, efémera, será menos real? Só a vê quem a procura, quem a quer ver. Que segredos encerra?
Que reflexos ganham o papel à minha ordem? Quantos se evadem à revelia? Quanto de mim está disperso por entre as histórias dos outros? Que portas escancaro, que janelas entreabro, que acessos me recuso a revelar? Que lágrimas oculto por entre as alheias, que mágoas divido, que alegrias e êxtases lhes empresto, quantos sorrisos lhes arranco?
Como a árvore bela e frondosa, que floresce em rosa, hino à alegria: o que oferece nas flores viçosas, que histórias carrega gravadas no tronco forte, o que guarda nas raízes, que ninguém vê -ocultas, profundas, essenciais….
Porque… escrever é viver-me do avesso, para além de mim, para além dos limites que um longo treino me impede de violar. É espremer a esponja com suavidade ou violência e recolher as gotas numa folha de papel, soltá-las sem as desprezar, dar-lhes sentido. Fazê-las viver de novo – tantas vezes num novo destino. E depois… esponja que não sei deixar de ser, eis-me de novo, sob a chuva miudinha, sem abrigo, sem impermeável para as vidas alheias. Que passam, que vão e que ficam em mim, que me ensinam a identificar, num destino sem direito a folha de papel, impermanente como a vida, mais e mais e mais e mais e mais… motivos para sorrir!

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