15 janeiro 2010

A CURIOSIDADE DO BEIJO

A vontade não era muita. Que é como quem diz: nenhuma. Mas entre o consciente e o inconsciente residem todos os ruídos possíveis no esquema inscrito pela violência do branco no negro do quadro da escola: emissor – canal –/ RUÍDO RUÍDO RUÍDO /- mensagem – receptor. Da falha, a vontade de ir, consciente. Sempre desobediente.

Como a negativa pouco convincente da criança (que choraminga dominada pelo sono e insiste em não dormir), tomada pelo hábito, procuro nos arquivos o sorriso adequado, os gestos mais cativantes, as palavras com provas dadas, que, cuidadosamente alinhadas em frases garantem a atenção e o sorriso dos demais – é festa quando todos sorriem, certo?

Um tédio metediço é violentamente rechaçado, remetido à sua insignificância, redobrados que são os esforços para soltar a alegria, buscando na sonoridade da gargalhada o conteúdo lógico, associado ao sentimento – não é rir estar feliz?

Rodeiam-me paredes tristes, enfeitadas de imitações de natureza que, de falsificadas, destoam. E pessoas que os anos já conhecem de longe, quase todas perdidas no seu ar alegre, buscando com o olhar vazio outra negativa. Como na matemática: menos com menos dá mais.

Interrogo-me, criminosamente, a medo, ousando desafiar a consciência, se realmente quero continuar naquele carrossel de músicas de vinil, mais gastas que o seu suporte, soltando-se dos lábios maioritariamente anónimos, ferindo-me os ouvidos. A resposta não é coerente com os meus lábios que se movem também, soltando sons articulados, tornando-me apenas mais uma voz perdida entre as demais.

Os copos enchem-se e esvaziam-se do néctar do São Martinho, as castanhas teimam em não soltar a pele, mas emanam sem se lhes pedir o cheiro que roubaram à erva-doce. E as emoções libertam-se. As alheias. Que as minhas, prefiro-as guardadas. E os sorrisos genuínos surgem nalguns rostos, ostensivos, assertivos, como máximos que o carro no sentido oposto não desligou a tempo.

Sabem a falso as castanhas. Cozidas. Como o rosto dos outros, à luz de médios que não ofuscam. Entristecem. Iluminam uma disponibilidade tardia, uma solidão repelida, expulsa através do olhar, que só não se nota na breve fracção de segundos em que se pestaneja. Como se latejasse, intermitentemente.

Imagino o que está para trás da cortina do palco da vida desses olhares. A da mini-saia. Na montra. Em saldo… E se o tamanho não estimula, entreabre-se as pernas, e se o entreabrir não atrai, abre-se o vazio. Esgotam-se as armas ainda antes da batalha. E o campo fica lavrado, pronto para receber as sementes da dúvida e as lágrimas da tristeza. E de terra tão bem amanhada não há cultura que vingue. Nem uma espiga de trigo, nem uma papoila rebelde quebrando o castanho neutro da terra.

Derrotada na consciência, quando o tédio chocou de frente comigo sem se tentar sequer desviar, procurei a chave, bem no fundo do bolso, e dispus-me a abrir a porta e fechar-me ali mesmo, dentro de mim, até alguém tomar a iniciativa de desertar.

Artista! A palavra que me despertou do meu torpor interior, enquanto as minhas mãos batiam palmas, a minha boca mastigava, e o pé balançava a um ritmo que devia ser o da música cantada pelo barbudo que não se aguentava nas notas mais altas. «Quem é o artista?», «Quem é o artista?» e não percebia o que me violentava mais na minha vontade de introspecção, se o som da frase repetida ou as mãos que me apertavam o braço, tentando obter a minha atenção.

De longe, percebi que era vivo no meio de mortos, vermelho no meio do verde, líquido no meio de sólidos, uma completa antítese da realidade ali gerada, nos oitenta metros quadrados barulhentos e de odor a fritos e erva-doce que me enclausuravam. Era alto, t-shirt preta. Apenas. Antes que a porta se fechasse, tentei regressar ao conforto do alheamento interior, deixando os meus músculos livres para corresponderem às expectativas alheias, desenhando sorrisos, gargalhadas, gestos amplos ilustrando comentários inteligentes e espirituosos. Que encantavam a todos. E que nunca falham. Mas o «artista» não cedeu. Nem aos gestos, nem à presença de espírito. Nem sequer ao que não precisava de ser fabricado – o aspecto físico.

Estranho… da primeira fila foi difícil olhar nos olhos. É mais fácil quando o adversário se rende. Pode ser magnânimo, o olhar. Mas… e assim? Qual a expressão, a duração, a intensidade? Encontrei conforto no fascínio dos dedos, movendo-se sobre os fios, transmitindo ordens firmes às cordas de aço, com uma precisão que a velocidade parecia impossibilitar à partida e obtendo delas uma obediência que não condiz com a sua natureza inquebrantável de metal, como se cada nota fosse ora um gemido, ora um grito de raiva, sempre imbuídos da vontade de revolta do jugo daquelas mãos autoritárias que as dominam… Para piorar as coisas, pobres cordas, vêm abafado seu clamor, seu carpir, pela doçura incoerente de uma voz que se lhes sobrepõe, roubando-lhes o protagonismo que os dedos lhes arrancam violentamente.

Deixei-me embalar e, com o sono, abriu-se a porta, o RUÍDO RUÍDO RUÍDO desobstruiu o canal e o consciente fez as pazes com o inconsciente abrindo na comunicação entre eles o sinal verde para a minha decisão. Pensei que não quisesse ir. Era difícil. Porque o faria? Com desconhecidos, desinteressantes, fora de horas. Podia ser maneta, ainda assim teria dedos suficientes para contar os sorrisos laboriosamente arrancados do ar distante, desligado, quase pedante com que ocupou o lugar em frente ao meu. A resposta era óbvia, mas…

O destino era incerto, não tive tempo para pensar nisso, siderada que estava ainda com a incoerência do sim. Nem com a postura, nem com o olhar, nem com a ausência do sorriso. Não batia certo com nada. Na tranquilidade da música ao vivo, a atenção dispersa tocava-me de quando em quando, sempre na forma de desafio, subtilmente denunciando a percepção da minha fragilidade.

Batia-me com a espada partida da estocada do sim e isso era do conhecimento do adversário. Que atacava só na medida em que eu me podia defender, cavalheirescamente. Gradualmente empurrando-me contra a parede. Tornando-me vítima de mim própria, da minha teia, enrolando-me em cada um dos seus fios, e, de firmes que eram, porque tão cuidadosamente tecidos, impossibilitando-me correr em jeito de fuga.

E num «orgasmo» doce de tragos pequenos, pouco saboreados, em jeito disfarce, o tempo passou e impôs o regresso, não sem que antes, e em jeito de despedida, o «artista» lançasse o seu contacto contra a teia em que estava envolta, por mim urdida, e nem por isso mais confortável.

Impulso? Não. O caminho estava traçado, a curiosidade sai sempre vencedora e a vontade é sua escrava. O contacto foi lúcido. Os seus perigos também. Por isso mais estimulantes, com ar de precipício, antevendo o prazer do vento no rosto e nos cabelos mesmo na beira, sem a preocupação de saltar ou não. Isso é para o vento decidir: se me empurra ou nem por isso…

Jogámos um jogo sem nos preocupamos em encontrar adjectivos. Conforto absoluto numa intimidade intuída, presente, cativa nos olhares que se buscam mas que se lêem ainda antes de se cruzarem. Alento na pressa que não se tem.

O prémio? Do beijo, a curiosidade revelada, e o ranger da janela que se entreabre preguiçosamente convidando veementemente a espreitar…

Nenhum comentário: