15 janeiro 2010

UM DIA QUENTE DE OUTONO


Trazia nos pés os restos do dia...

Sabia da necessidade do banho, mas ignorava-a. Queria perpetuar, do dia, um não sei o quê. Como se cobrisse o seu corpo uma película frágil mas real, de algo que queria manter junto de si a todo o custo.

O sol brilhou nessa manhã e acordou a sua alma, ainda antes dos seus olhos se abrirem. Como se lhe anunciasse, eufórico, que lhe pressentia um dia absolutamente maravilhoso. Foi convincente o suficiente, aquele braço iluminado que rasgou as cortinas brancas, para a fazer erguer bem cedo da cama.

A água afagou-lhe o corpo com o desvelo de um amante antigo, percorrendo com familiaridade todos os recantos e a toalha branca, enrolada nos cabelos, deu-lhe uma extraordinária sensação de conforto, de pureza. Jamais havia pensado na importância da toalha com que secamos o cabelo.

Revolto, o cabelo tocou-lhe no fundo das costas, soltando algumas gotículas de água, marotas, à medida que a escova abria estradas lisas nas mechas selvagens e húmidas.

Saiu para a rua e à medida que o cabelo se libertava, secando à mercê do sol e do vento, algo dentro de si se aligeirava, como que se tornava leve. Caminhou decididamente, seguindo o trilho que o sol traçou, ainda antes da sua consciência.

Quando olhava para os pés, sorria...

Um pequeno-almoço saboreado ao ritmo de pequeno-almoço, congelando com o desprezo o movimento dos ponteiros do relógio. Os comboios intercalavam-se a espaços curtos, como uma excursão monótona de lagartas, o destino confinado ao ir e vir da primeira à última estação.

As filas vistas de fora. A senhora gorda a quem os braços não cabem na manga curta da camisa de poliéster a imitar seda, esforçando-se por não perder a posição de líder do pelotão. Não apanhou o último comboio, para ser agora a primeira e ir sentada. O moço de fato ligeiramente largo, desajeitado, a quem a pasta do computador portátil incomoda, como se o peso de toda a responsabilidade do emprego novo se concentrasse naquela mão esquerda, forçando o ombro a descair. As duas rapariguinhas, fluorescentes de vida e despreocupação, com o brilho da manhã reflectido no metal que ostentam nos dentes enquanto soltam risadinhas parvas, a propósito de mais uma qualquer experiência iniciática...

Sentou-se no sofá e colocou os pés em cima da mesa da sala, para melhor contemplar os contemplar, em jeito de troféu, sempre com aquele sorriso, muito presente, em contraste com o olhar ausente...

Há quanto tempo o não fazia, mas soube bem, tão bem.... O Chefe no papel de mãe inquisidora, anteviu. Mas era irresistível. Como nos dias em que se baldava às aulas o dia inteiro e rezava para que as vizinhas a não vissem. Se a mãe desconfiasse!.... E tudo o que fazia nessas ocasiões, do sabor tão doce do proibido, tinha um toque de magia sem varinha de ilusionista. Era real, fugaz, mas real.

Nem notou que as nuvens lhe seguiram o exemplo, e não compareceram no seu lugar de trabalho costumeiro, como seria de esperar num dia de Outono confiável... Num exercício de absoluta prepotência, o Sol impôs-se uma vez mais e, já movida por quatro rodas, desbravou o alcatrão em sentido contrário ao movimento pendular típico de uma segunda feira em grandes cidades.

De tão tranquila, os olhos fechavam-se-lhe e, involuntariamente, um dos pés deslizou um pouco sobre o outro, espalhando um pouco do tesouro do seu dia sobre a mesa...

O ar ali, solto dos paralelepípedos encavalitados, das cicatrizes negras em que circulam chaminés semi-ocultas, dos corpos que o aspiram e o expiram sujo de maldade e tristeza, era fresco, e soprava o suficiente apenas para lhe acariciar os cabelos com a doçura com que uma mãe penteia uma filha. E o verde era verde, sem filtros cinzentos de poluição. E a terra tinha o cheiro distinto da terra, sem desodorizantes, ambientadores ou ar condicionado. Ali tão perto. Verdadeiramente perto, tão próximo do seu mundo, da sua realidade quotidiana que a transição quase parecia traumática, de tão descontinuada.

O som não era doce, porque transmitia poder, um poder tremendo, tão forte que bastava ouvi-lo para sentir a invencibilidade. Mas que não assustava. Um poder não invasivo, um poder não exposto, que de tão inerente, de tão intrínseco, não podia ser percebido, apenas intuído. E de tão sereno, esse poder atraía...

O som perdia-se à medida que o movimento levava as pequenas pedras para longe, e adivinhava-se-lhes o destino. Mas a altura e o caminho íngreme não a impediram e os arbustos revelaram-se amigos preciosos. Da coragem da descida a recompensa foi a absoluta tranquilidade da pequena enseada, encaixada - a custo - numa moldura severa de penhascos atrás e mar à frente, tendo por tapete as pobres pedrinhas (tantas...) vítimas da gravidade e o céu benevolente –estranhamente ensolarado nesse dia.

Sentou-se e preparou-se para estar sozinha. Não sendo habitual, tal tarefa afigurou-se-lhe ciclópica, quase dolorosa, mas ao mesmo tempo, possivelmente libertadora. Aqueceu os dedos, para, um a um, tentar desatar os laços que prendem a sua consciência ao mundo – apertados, quase todos! – e que a enquadram num contexto, correspondendo ao que de si é esperado. Inquietou-se com a dificuldade. Não se imaginou tão presa. Mas, se alguns eram laçarotes airosos, soltos, a maioria eram nós de marinheiro, intrincados, fossilizados pelo tempo.

Devia ser involuntário, provavelmente, mas no seu sono, agora mais profundo, esfregou os pés mais vigorosamente um contra o outro...

Embrenhada na tarefa que o Sol lhe havia proposto, ainda antes da sua consciência se erguer nesse dia, assustou-se com um cão que passou agitado por sobre as suas pernas, salpicando-a de água salgada. Quase se zangou com o pobre animal, mas antes sentiu a sua inquietação e perdeu-se a zanga. Só então notou que a maré havia vazado e a enseada tinha agora uma orla de areia que amortecia o contacto do mar com as pedrinhas ásperas roubadas à falésia e que abria uma espécie de caminho, como se de um portal se tratasse.

Seria bonito de observar em pormenor, mas o cão ladrava furiosamente, como que procurando chamar a sua atenção. Aproveitou a oportunidade – um excelente álibi – para deixar os nós e os laços, levantou-se e enterrou os pés na areia húmida e fria que lhe mostrava o caminho até à ponta da falésia, onde se adivinhava uma outra enseada...

As pedrinhas maiores, mais pesadas, soltavam-se-lhe dos pés, à medida que estes secavam e que, no seu repouso tranquilo, ela se movimentava docemente....

Aquela praia era um pouco maior, mas não a observou em pormenor. Reparou imediatamente no corpo que a areia acolhia, quase com ternura, e que a água lambia com desvelo cadenciado, como um cão lambe uma ferida.... Precipitou-se e desarranjou a areia, com a força dos pés que nela se enterravam, e violentou o mar, que ripostava com salpicos que ela nem percebia e quando se acercou daquele corpo imóvel, acometeu-a um medo inaudito que poderia ter sido paralisante.

Tinha um fato preto vestido. Surfista. Assim vestido, tarde no Outubro, era uma evidência. Um rasgão na perna, outro no braço direito, o sangue dos cortes diluído no sal e a inconsciência da dor na inconsciência de tudo. Virou-o lenta mas firmemente, o rosto incólume, um mau pressentimento em relação ao braço, e.... respirava! De novo os pés na areia que o sol já quase conseguira secar, à força do retrocesso do mar, a energia concentrada no pedido de auxílio, a mão lançada para o fundo da bolsa e o número das emergências marcado instintivamente no telemóvel.

A espera, o arrependimento pelo desprezo outrora votado aos ponteiros do relógio, o tempo, esse inexorável inimigo, e o conforto apenas no calor do Sol – demasiado, para um dia de Outono – e no ritmo fraco sentido no pulso vigorosamente preso nas suas mãos, tensas e frias.

Uma pedrinha maior fez um ligeiro ruído, inaudível a não ser no silêncio de uma consciência em paz, e acordou-a do seu sono... Quando se apercebeu das graves perdas que sofrera durante o sono quase chorou. Mas os olhos castanhos que se abriram no hospital secaram-lhe as lágrimas. E o obrigado depois de recuperar a consciência. E o silêncio enquanto dormia o sono narcótico incutido pelo frasco pendurado no lado direito da cama. No braço direito, engessado, o número do telefone dela. Que tocaria...

No caminho para a casa de banho, espalhou mais pedrinhas e a areia contou ao soalho flutuante, curioso, tudo o que se tinha passado nesse dia tão singular. Na banheira, a água domada da cidade contornou-lhe o corpo nu e o sol despediu-se dela com o seu último raio, reflectido na água que a aquecia, num dia quente de Outono.

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