26 junho 2010

MINÍMETROS

Àquela hora as sombras estavam quietas. Ficavam assim, quando a noite se aproximava, em reverência. Àquela hora não havia tempo. Porque os relógios paravam e deixavam-se estar, cansados. Àquela hora os demónios libertavam-se e devoravam mundo são, tragavam-no, sorviam-no, encurtavam-no.
Nas horas, evaporava-se o tempo. Via-se vapor de segundos, sentiam-se nuvens carregadas de minutos no branco desbotado do tecto. Nunca se precipitariam e não cumpriam o ciclo da água. Acumulavam-se numa nuvem de chuva, ameaçando ocupar todo o espaço. Molhando-o quando lhe devolvia lágrimas. Atordoando-o quando lhe sussurrava gritos, restos de lamentos que, de indistintos, conseguiam ser ainda mais angustiantes.
Os milímetros alinhavam-se numa nova escala. encolhidos, duplicando a sua insuficiência. Era falta, o espaço. As dimensões encontravam-se na medida em que o espaço físico diminuía todos os dias – assim parecia – e o emocional esticava por corredores e câmaras escavadas numa dimensão que desconhecia. Feita de minímetros: milímetros mínimos.
Em cada minímetro sufocava. Asfixiado mais em si do que na falta de espaço. Em espirais que atravessavam as linhas rectas da lógica, deixava-se vergar à forma da interrogação. Corcunda do peso, queixo quase no chão. A dúvida precedia a inexorável certeza: os minimetros estavam a abarrotar de tempo. O tempo que lhe roubavam e enclausuravam na sua pequenez ampliada.
O tempo dos desenhos que traçara no lençol do sonho, com pincel molhado em água. À contra-luz, foram possíveis e existiram. Não fora o vento vir e secá-los deixando o pano alvo e vazio retesar-se a cada capricho do vento e render-se, fibra a fibra, ao Sol inclemente. Um dia rasgou-se, desistiu fibra a fibra, soltou-se das molas carcomidas e ganhou uma liberdade moída pela ignorância do destino. Nesse dia o seu horizonte tingiu-se de uma quadrícula, de uma rede que o Sol não queima e o vento não faz abanar. De onde não lhe saía o olhar.
A janela moldava a luz, logo pela manhã, quando aquela se queria partilhar. Cortava-a e oferecia-lha multiplicada em nove. Ou dividida… Olhava, impassível, o debandar das sombras. Sabia que os gritos que elas carregavam se iriam também. E que a campainha tocaria nas rotinas e as faria arrancar. Que a porta se abriria para minímetros maiores e partilhados. À força. Que um número se multiplicaria sem alterar o resultado da operação: sempre Zero. E que o tempo continuaria a avançar em sentido contrário. Tão perto e tão longe.
Um dia fez amizade com as trevas. Ganhou intimidade com as sombras, ali paradas nos intervalos dos relógios. Com os demónios que afinal eram seus e não o deixariam jamais. O lençol que outrora pintara de vida e esperança serviu de testemunha quando o corpo se esticou para fora da dúvida. Que a luz da manhã revelou, sempre partida em nove.
Nove fora nada.

4 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

"Que um número se multiplicaria sem alterar o resultado da operação: sempre Zero. E que o tempo continuaria a avançar em sentido contrário"

como na vida - às vezes!


bela prosa com imensa poesia!

beijinhos amiga!

M(im) disse...

Heduardo!
Obrigada.
A vida e os seus mistérios e incongruências....
Beijo amigo

Nilson Barcelli disse...

G..., este teu texto é fabuloso.
E este "pedacinho", nem sei classificar...:

" Não fora o vento vir e secá-los deixando o pano alvo e vazio retesar-se a cada capricho do vento e render-se, fibra a fibra, ao Sol inclemente. Um dia rasgou-se, desistiu fibra a fibra, soltou-se das molas carcomidas e ganhou uma liberdade moída pela ignorância do destino. Nesse dia o seu horizonte tingiu-se de uma quadrícula, de uma rede que o Sol não queima e o vento não faz abanar. De onde não lhe saía o olhar. "

Quem sai daqui a abanar, sou em... mesmo sem vento...

Minha amiga, parabéns pela excelência deste texto

Beijos.

M(im) disse...

NILSON: o que te digo, o que te escrevo?
Fica um sorriso enorme.... que um obrigada é curto.
Beijo